Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

O caminho pequeno

Nos tempos escuros que estamos vivendo, o caminho pequeno pode ser um bem-vindo susto

Publicado no jornal O Globo (Cultura - 17/02/2018)

A santidade é terrível. O poeta Rilke escreveu num lindo poema: “Todo Anjo é terrível”. O que talvez quisesse dizer é que pôr-se longe do animal “que cobra o sangue”, perto do Deus Desconhecido, é tremendo. O Anjo voa nessa luz excessivamente brilhante. Nós, não. Os grandes santos tiveram vidas torturadas, conscientes da espantosa distância, desejosos de reduzi-la, de fazer a “imitação de Cristo”, de experimentar Deus ainda no caminho dessa vida imperfeita. Abismar-se no Mistério. Esse desejo desmedido é também terrível. Como o Anjo.

Houve um santo intelectual até a medula, Tomás de Aquino. Frade de uma ordem cujo lema é Veritas, os dominicanos, procurou infatigavelmente a verdade. A Verdade de Deus. Mas precisou passar pelos caminhos todos da razão. Padeceu do fato de que a nossa civilização não é a grega da razão nem a judaica da fé. É as duas. Lutou entre a fé e a razão, resolveu (de um modo tão brilhante que nunca foi retomado depois) a questão da relação entre esses antagônicos pilares da nossa cultura. Fez obra monumental. Sua Suma Teológica é um acontecimento. Estudar esse livro grandioso é como fazer uma viagem para longe de nós mesmos. Santo Tomás era silencioso. Vivia por dentro a contradição que nos mantém vivos, nós, a humanidade ocidental, e conhecia seus perigos. Procurava a verdade na esperança de que, sendo ela uma pálida semelhança da verdade de Deus, lá um dia, quando menos desse por isso, chegasse à Verdade. Chegou.

Conta-se assim. Estava um dia o frade em oração, profundamente meditativo, e subitamente deixou de ser-se. Outro o tomou, o arrastou para um lugar onde a razão não valia nada, a não ser o que ela de fato é: a marca da nossa rigorosa imperfeição. Tomás pensara sempre a razão, o intelecto humano, como reflexo de Deus, o Sumo Intelecto. E dedicara sua vida a ela, e a Ele. Mas a razão, foi o que talvez tenha descoberto nesse momento de saída de si, é um ferro em brasa na carne do nosso espírito. Ela assinala a nossa distância do divino. Precisamos da razão porque carecemos de Deus. O caminho místico, que ele não desprezou, foi na sua obra uma teo-logia, grito da razão desamparada. Pois se Deus for essencialmente Amor, e não primordialmente Intelecto, a razão não o alcançará. Ficará sempre aquém do Mistério. Mas nesse dia de oração Tomás viu o que não entendia. E, quando voltou ao estado comum que partilhamos entre nós, compreendeu que toda a sua imensa obra era só “palha e vaidade”. Exagerou, o santo. Mas assinalou um problema grave para quem quer seguir a palavra de Cristo — “Sede santos como vosso Pai é santo” — e esbarra no molambo da razão. O caminho da santidade, da imitação de Cristo, é para muito poucos.

Há na catedral de Notre-Dame em Paris um cantinho que visito sempre. Tem nele um grande quadro de Santo Tomás ensinando, e aos pés dele está a inscrição “Fonte da Vida”. E ao lado uma pequena estátua, comovedoramente simples. É Santa Teresinha do Menino Jesus. Estão lado a lado porque são, ambos, doutores da Igreja. Santo Tomás compôs uma obra colossal. Santa Teresinha escreveu um diário. E algumas cartas. Não achava que o caminho da santidade precisasse ser pedregoso e espinhento. Elaborou a ideia (não é mesmo uma teoria) do caminho pequeno. Dizia que queria ir a Deus por uma via reta e curta. O pequeno caminho. E por ele só passam aqueles que são capazes de se abandonar à criança que são. Aceitar-se com todas as suas imperfeições. Não tentar falar com Deus, para que ele possa ter toda a liberdade para agir. Abandonar-se. Ter confiança. Caminho tão distante do penoso e sacrificado de São Francisco! E do brilhante e racional de Santo Tomás! Uma mística feita de ser criança e de amar a Deus. Aceitar-se, mas sem condescendência: “Não quero ser santa pela metade. Escolho tudo.” Disse também: “Deus é terno como uma mãe”. De novo, a criança. A que não se preocupa nada com o futuro. A que vive num presente que parece eterno, porque inteiramente habitado por Deus.

Santa Teresinha morreu com 24 anos, sem nunca ter saído do seu convento. Seu caminho pequeno não passaria então pelas nossas vidas, a dos não enclausurados? Passa. Foi para nós que escreveu seu diário. É cheio de alegria e aceitação, de misticismo e pequenas coisas que são da vida comum. O diário de uma criança que tinha dificuldade em crescer, mas sentia-se grande quando se deixava, alegremente, embaraçar pelo Amor.

Nos tempos escuros que estamos vivendo, divididos pela pandemia do ódio, o caminho pequeno pode ser um bem-vindo susto. Porque nos ensina que a vida pode ser mansa e risonha, e que isso talvez baste. Não seremos santos. Mas quem sabe a presença dos outros como nós, que tantas vezes nos faz ranger os dentes de intolerância, possa, um pouco apenas, brilhar nos nossos olhos como o rosto esquivo de Deus.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)