Sócrates e a memória
Quando a Memória deixa de ser coisa viva, a História também entra em sofrimento
Publicado no jornal O Globo (Cultura - 03/02/2018)
Andava um dia Sócrates acompanhado de Fedro. Passeavam, tendo a caminho um diálogo que depois Platão escreveria. Era assim, parece. Sócrates falava, Platão estava presente ou lhe contavam, e ele escrevia. Iam portanto Sócrates e Fedro, e conversavam.
Fedro gostava dos sofistas, os que vendiam seus discursos, sua retórica, sua arte oratória nas cidades. Tinha escutado do sofista Lísias uma oração sobre o amor. O tema não podia ser melhor. E Sócrates estava interessado em, através de Fedro, dialogar com o autor de um discurso tão importante. Pediu. Fedro não se fez de rogado: tirou de dentro da túnica um rolo com as anotações minuciosas da longa fala do sofista. Melhor relato não poderia haver. Mas Sócrates disse não. Fedro que se esforçasse por lembrar. As palavras escritas matam a memória. São um registro frio. Não pensam. São definitivas. Ora, a Memória, Mnemosine, era a mãe das Musas. E sem o trabalho das Musas nada se criava. Nada: da dança à poesia, do teatro à história. Um mundo sem Musas... Sócrates não o toleraria. E pediu a Fedro que enrolasse de volta sua transcrição e levasse adiante, a partir da sua memória, uma conversa sobre o amor. Lísias valia menos do que o amor. Sócrates queria conversar sobre o amor. A partir da memória de Fedro do discurso de Lísias. Mas sobre o amor.
A cultura grega era letrada há muito tempo. O gosto de Sócrates pela oralidade decorria da sua paixão pela vida. A palavra escrita congela. A falada voa. — Sócrates não sabia que Platão um dia escreveria tudo. Ou não teríamos nem essa narrativa do Fedro, o Diálogo. Mas por enquanto nada está fixado em letra. Estão Sócrates e Fedro conversam e são felizes.
Foi só depois, presumivelmente após o assassinato do mestre pela cidade de Atenas, que Platão inventou a forma do diálogo para honrá-lo simulando por escrito as conversas da sua vida. E essa forma literária acabou absorvendo a matéria viva. Deixou, mais ou menos, de importar se Sócrates tinha ou não dito o que, por escrito, Platão o fazia dizer. Os Diálogos, que podem ter começado como registro, viraram textos autônomos. Matéria quase abstrata para pensar. Há mesmo um Diálogo sobre a morte de Sócrates, com o criador da filosofia presente e ativo. Chama-se Fédon. Para nós, hoje, é um Diálogo de Platão sobre a morte, no qual Sócrates é um privilegiado personagem. Um grande Diálogo. Um texto.
Aristóteles também escreveu. E como! Devemos a ele a forma do tratado, que só escrito é possível. A filosofia veio a seguir esse caminho. Pode ser um dos motivos pelos quais hoje se diz por aí que ela acabou, ou pelo menos não tem mais importância. Abusou da falta de memória. Aristóteles também escreveu diálogos. Sumiram. Os tratados foram escondidos quando começou a perseguição aos partidários de Alexandre, de quem o filósofo tinha sido preceptor. Foram encontrados por acaso três séculos depois pelos invasores romanos. Um desses livros, o da Metafísica, no fundo de uma adega. Os romanos puseram em circulação os tratados que consagrariam a desvalia da Memória. E nisso fizeram História. A história, filha de Mnemosine, também virou texto. Registro. Ata.
Jesus também não escreveu. Falou de dentro da sua vida. Quem tivesse ouvidos para ouvir, ouvisse. Os evangelistas tiveram. E escreveram seus Evangelhos. Eles não são a Revelação. A Revelação Cristo fez vivendo, morrendo e não morrendo. Sendo, em presença, o filho do Pai. Os evangelistas deram testemunho. Reduziram a texto uma vida que nem a morte reduziu. Não mataram o espírito, porque o Espírito soprou sobre eles. Mas tornaram a Mensagem, por que não dizer, “oficial”. Houve inúmeras narrativas evangélicas. Só quatro se consagraram. As muitas outras foram consideradas heréticas. Exerceu-se o poder, que a palavra escrita permite. Nela é que se luta pelo privilégio da verdade. — Mas, de fato, sem os quatro Evangelhos não saberíamos o que Jesus pregou. Como foi sua vida. E sua morte. E sua ressurreição. Como Platão com Sócrates, os evangelistas puseram uma vida em texto, e a preservaram para nós. Nada mal.
Depois, modernamente, a memória veio a ser entendida apenas como “faculdade da alma”. Ao lado da percepção, do pensamento, da linguagem. Desceu um degrau. Mais recentemente, virou “dimensão cognitiva”. Pode ser estudada autonomamente, como objeto. Experimentada com ratinhos e eletrodos que medem o cérebro. É genial. Mas Mnemosine desceu mais um degrau. Há muito tempo acabou a idade das Musas. Passamos pela dos museus (que são registros). Parece que até esse acabou.
Quando a Memória deixa de ser coisa viva a História também entra em sofrimento. Vivemos isso hoje, o sofrimento da História. Vocês não sei; mas eu ando com saudades do tempo em que Sócrates passeava com Fedro e a Memória tecia a carne das ideias.
Foto: Gustavo Stephan (O Globo)