Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Os primeiros poetas. Os últimos poetas?

Talvez há muito tempo não se precise tanto da poesia encantando as tribos em volta do fogo

Publicado no jornal O Globo (Cultura - 27/01/2018)

Os primeiros poetas não sabiam que faziam poesia. “Poesia” é um nome e um conceito. Surgiu mais tarde, para dar conta da atividade de certas pessoas, os poetas. Mas, lá no começo, não havia poetas. Hoje, olhando para eles, dizemos: poetas. E os admiramos como quem descobre seus antepassados. Eram pintores os autores das excepcionais imagens de Lascaux e da Grotte du Pont d´Arc? Para nós, sim. Mas eles sabiam que faziam pintura? De novo: “pintura” é uma palavra e um conceito que serve para dar nome a uma atividade social. Mas só é poeta, ou pintor, ou artista em geral, quem sabe disso. A arte é intencional.

Talvez os primeiros poetas tenham sido pessoas comuns que davam ritmo ao cotidiano. E não tomavam as coisas como elas apareciam, procuravam mistérios. Não diziam as coisas comumente, cantarolavam o extraordinário. Um pouco como as crianças brincam. Jogando com o banal, que vira diversão, que é coisa do mundo, mas não é como todos fazem. É melhor. Os primeiros poetas tinham talvez uma função social importante: conjurar, pelas palavras com ritmo, os medos. Medo da noite. Até hoje quem vai no escuro e sozinho pode cantarolar para entreter o medo. Medo dos trovões. Das grandes chuvas. Das grandes secas. Dos animais ferozes. Das ameaças difusas. Os poetas diziam coisas que talvez parecessem sem nexo, mas acalmavam. Traziam as pessoas para perto umas das outras, como as fogueiras trazem. Ensinavam a ouvir. Ouvir é importante. Os poetas davam a ouvir. Diziam, por exemplo, alguma coisa assim: — As vozes do céu ficam no céu — E o medo dos trovões diminuía, eles não eram coisas da terra. Mais ou menos assim.

E as estações? Havia flores, as árvores davam frutos, a caça era abundante. Passava-se um tempo e caía um grande frio. As árvores ficavam nuas, como mortas. A caça sumia. Havia fome. O poeta podia dizer de um modo não banal que o tempo volta, e o medo pode virar espera. Há esperas duras, as da fome e do frio. Mas tempo virá. Como os poetas diriam isso? Provavelmente de um modo que, por ser extraordinário, fora do comum da fala, aquietava. O tempo volta... O que passou não passou, pois volta... Está aqui, não estamos vendo, mas havemos de ver. Ele deve ter razão. Uma coisa assim.

E os deuses. Que coisa, os deuses! Estavam lá e cá, nas cabeceiras dos rios, fluindo sempre, nas águas que trazem a fertilidade, nas florestas onde o mistério se escondeu. Aqui. Mas ao mesmo tempo lá, no longe, na montanha sagrada, nas pedras arrumadas por mãos não humanas. Lá e cá. Quem poderia viver com isso, com a distância e a proximidade ao mesmo tempo? O poeta, quem sabe, podia. E com o poder? Os deuses têm poder, às vezes são cruéis. É possível escapar à força inumana? Os poetas contavam história dos deuses. Quem sabe eles podiam? E soubessem ensinar? Era preciso ouvi-los. Qualquer coisa assim.

Depois a poesia foi cantada, acompanhada de instrumentos. Pode ter virado arte então. E os poetas foram honrados, porque eram guardiões de uma sabedoria divina. Suas palavras extraordinárias não ocorriam às pessoas comuns, que no entanto as amavam por si mesmas. Pelas palavras que eram, pelo ritmo e pelo som. Esse terá sido o momento em que o poema apareceu como uma coisa. Passada oralmente, e depois escrita. E aí registrada como coisa mesmo: o poema. A “Ilíada”. A poesia amorosa de Safo. Os passos de Gilgamesh. Ainda tinha função, a poesia. Sem dúvida. Mas já não era tão misteriosa. Era coisa da Memória, das Musas, como os gregos experimentaram. Fazia comunidade. Purgava os medos e as iras. Mas o mistério era menor. Nem sempre o extraordinário é misterioso. Era possível encomendar poemas. Os poetas geravam festivais. Foi uma outra história.

E depois... Depois os poemas ficaram autônomos. Passaram a ser lidos com os olhos, em silêncio. Entraram no recinto privado do encantamento pessoal. A poesia ainda é lida em voz alta, para ouvintes. Mas não precisa. Os olhos silenciosos bastam. O que faz barulho na praça, no público, é agora a política, são os negócios. A poesia ficou estética, lugar da beleza. Falou-se na “torre de marfim” em que ela se enclausurou para escapar da feiura do banal. E depois a beleza deixou de ser um valor de primeira ordem. É bom, claro, que as palavras sejam belas. Mas é fundamental que sejam úteis. E a poesia...

Talvez há muito tempo não se precise tanto da poesia encantando as tribos sentadas em volta do fogo quando a noite cai. Os poetas estão aí. A poesia não acabou. Mas pouca gente olha para ela com amor. Dissecar um poema, entendê-lo como coisa, não faz honra à explosão da poesia. Ela não deve ser mantida na posição de objeto que veio a ocupar. Ela não é objeto nenhum. É a respiração amorosa da vida. A vida pode estar pendurada num verso. Precisamos achá-lo. Antes que o amor acabe.

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)