Quando a religião invade o espaço público
De repente, alguns cientistas começaram a percorrer o mundo numa vigorosa cruzada ateísta
Publicado no jornal O Globo (Cultura - 20/01/2018)
No século VI a.C., Tales, na sua cidade de Mileto, na Ásia Menor, olhou a profusão de elementos à sua frente e disse: “É a água!” Assim, sem mais: é a água. O que “é a água”? Segundo Aristóteles, no século IV a.C., esta foi a resposta de Tales à pergunta sobre qual dos quatro elementos teria a força de unificar toda a imensidão do mundo. Tales, fincado na terra de Mileto, viu a água do mar fazer-se ar e subir na direção do fogo do céu. E disse: é a água. Hegel, no século XIX, viu aí a primeira forma da pergunta filosófica: o que rege a dispersão imensa de todas as coisas do mundo? E foi mesmo. Reconhecemos nela o corpo inteiro da filosofia que veio depois. A razão unificadora entrou em cena através desse fragmento de fala que Aristóteles guardou para nós. É a água. A frase se diz em torno do verbo ser. A pergunta deve ter sido essa: o que é? A filosofia está toda nela.
No século XIX a.C. vivia Abraão na cidade de Ur na Caldeia. E um dia Deus o visitou: “Sai da tua terra e vai para uma que te mostrarei, onde correm leite e mel, e tua descendência será mais numerosa do que as estrelas do céu e as areias das praias do mar”. Abraão há de ter tremido. Abandonar tudo para seguir esse deus improvável, que nem se apresentava como o rei dos deuses, mas como o único Deus? Mas foi. A terra prometida era Canaã, a Palestina dos hebreus, descendentes de Abraão. Um Deus, um povo. O povo dá testemunho de que há um só Deus. E Javé conduz seu povo, o que escolheu, pelo turbilhão da História, direito à sua frente. O Deus desconhecido, o Sem Nome. Mas sempre lá. Não há pergunta aqui: há adesão. A fé é a liga do primeiro povo de Deus. As religiões monoteístas estão todas nela.
Entre razão e fé não havia nenhuma convergência. Gregos e judeus não tinham de início nada para se dizer. Mas um dia, no século I, Jesus já misteriosamente nascido e extraordinariamente morto e ressuscitado, essas duas culturas tão estranhas uma à essência da outra, tocaram-se, estranharam, desejaram, repeliram — e juntaram. A razão grega e a fé judaica vieram fazer casa no Ocidente latino. Deve ter sido um tremendo encontro das águas. Tantas diferenças! Nós, ocidentais, somos filhos dessa pororoca. O rio sereno da razão, que sabe, e a torrente convulsionada da fé, que não pergunta, fizeram juntos uma terceira coisa, a cultura cristã. Deus, o Recluso, entrou na História. E a razão pensou: eis finalmente o Ser. O Ser ele mesmo. Não a água, não o fogo. Deus, o que é absolutamente. Tudo o mais decorre dele. Ele é o Criador.
Por muitíssimo tempo, uns 13 séculos, a unidade tensa de fé e razão teve por forma a teologia. Esse foi um território de acordo. A paz possível nessa nova cultura. Depois acabou. O Renascimento dos séculos XIV, XV e XVI focou no Homem e na Natureza. O humanismo e o naturalismo renascentistas não dispensaram Deus. Mas começaram a não ter olhos que enxergassem sua enorme distância. Um círculo cujo centro está em toda parte e a circunferência em lugar nenhum, diziam. Era demais para a razão. No século XVII, início da época moderna, fez-se um novo equilíbrio. Dividiu-se a sociedade em espaço público, que a razão habita, e esfera privada, onde moram a religião e a fé. E Deus. Foi um acordo. Houve lei para selá-lo. Um novo tempo se abriu ali para não destruir a tensíssima liga da manhã do encontro dos descendentes de Tales e os de Abraão. Mais ou menos funcionou.
Hoje, vamos sendo arrastados por um turbilhão que tenta romper esse equilíbrio. A religião invadiu com violência o espaço público, quer roubar a verdade à filosofia e à ciência. E, de verdade em punho, mas sem a razão mediadora, está avassalando o mundo. Do Ocidente ao Oriente. Desde negar a teoria da evolução porque contraria o idílio de Adão e Eva, até decapitar, e mostrar nas redes, os agentes do grande satã. Quando a religião invade o espaço público, e a ciência se vê ameaçada, um novo mundo começa. E não é bonito.
E a ciência reage de modo curioso: ataca Deus. De repente, alguns cientistas começaram a percorrer o mundo numa vigorosa cruzada ateísta. E puseram assim Deus no centro da cena. Deus mesmo. Aquele que, para eles, não há. Nem é tanto a religião. É Deus. Essa luta é inteligente e torturada. Porque os cientistas estão acostumados à objetividade das coisas que são. Acuar num canto do universo, e destruí-la, uma coisa que não é, chame-se mesmo Deus, não está no DNA da ciência. E quase podemos ver, na contraluz de um mundo que vai ensombrecendo, a pororoca do remoto século I retornando no negativo. Para os filhos da razão e da fé que, mal ou bem, ainda vamos sendo, é uma excitante batalha. Não é o juízo final. Pode ser um novo começo. Vamos esperar com paciência. A essa altura, quando a História vai sendo adiada, paciência é o que não nos deve faltar.
Foto: Gustavo Stephan (O Globo)