Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Utopias e mitos

A filosofia foi coveira da experiência mítica, a que deixamos de ter acesso

Publicado no jornal O Globo (13/01/2018)

Há um tempo, não muito, quando se dizia “mito” estava-se reverenciando alguém excepcional, que encarnava uma época ou um povo. Einstein foi um mito. Mandela foi um mito. Quando se pensa em ciência do século XX, é o nome de Einstein que ocorre. Quando se quer referir a libertação de um povo, pensa-se em Mandela. Ou Luther King. Ou Gandhi. Mais recentemente, começou-se a chamar “mitos urbanos” histórias que correm por via oral nas cidades e têm todas as características dos boatos. Que chineses não morrem em Portugal, por exemplo. Constroem-se fábulas em torno de uma bobagem, propagam-se e são acreditadas. Fazem parte das narrativas sociais. Mas houve um tempo em que Mito era uma maneira de viver.

Porque os conhecemos melhor, pensemos nos mitos gregos. Não temos mais acesso a eles, a não ser sob a forma de contos, como “Os 12 trabalhos de Hércules”. Apreciamos sua ação, que, por fabulosa, chamamos de mítica. Está bem. O que nos restou da experiência de estar no mundo dos muito antigos gregos foi isso. Damos-lhe o nome de “mitologia grega”. E às vezes ainda contamos essas histórias fabulosas. De como o rei dos deuses, Zeus, precisou se disfarçar de cisne para ter relações com uma mulher, Leda, que a princípio não queria conversa com o deus. Chamamos a esse conto “Leda e o cisne”. E ficamos felizes com esse conhecimento do nosso mais remoto passado. Mas o conto, na verdade, não vale grande coisa. O nosso boto emprenhador é páreo para esse cisne. A diferença é que o cisne era um deus.

Naquela outra narrativa, a dos trabalhos que a deusa Hera impôs ao mortal Héracles, o nosso Hércules, o extraordinário é que Hércules era filho de Zeus com a mortal Alcmena, uma mulher comum. Hércules era um semideus. Quer dizer, era e não era um deus, era e não era um homem. Ao mesmo tempo. Para a cultura grega que se seguiu a essa, a do século VI a. C., mãe da nossa, isso não fazia sentido. Porque o que é, é; e o que não é, não é. Deus e homem ao mesmo tempo não dá. Mas aí já tínhamos adquirido o gosto de separar e segregar. A experiência mítica já estava encerrada. Nesse século VI a. C., a filosofia foi inventada para expressar um outro modo, também grego, de estar no mundo e na vida. E a filosofia foi coveira da experiência mítica, a que deixamos de ter acesso. Aquela em que homens e cavalos não se opunham tanto que não pudessem existir centauros. Nem as mulheres e as águas, que impedissem as ninfas. Um tempo em que o humano, o divino e o natural andavam de mãos dadas. Acabou.

Houve um filósofo nesse século VI, Heráclito, que ainda transitou, ida e volta, pela ponte que podia ligar o Mito à Razão, ao Logos. Porque ainda havia ponte. Heráclito passeou por ela. Houve outro filósofo, Parmênides, que dinamitou a ponte. Acabou com a promiscuidade. Quando, dois séculos mais tarde, Platão precisou de um modelo para tornar a filosofia um sistema disciplinado, escolheu Parmênides. E expulsou da sua projetada República os poetas que contavam mitos. Expulsou Homero! E os mitos se tornaram uma espécie de contos infantis para adultos. Como “O pequeno príncipe”.

Foram precisos centenas de séculos para a banda ocidental da Humanidade começar de novo a pensar, de vez em quando, fora dos trilhos da deusa Razão. E a fabricar, de vez em quando, mitos. Mas já agora mitos prospectivos. Mitos de futuro. Se a antiquíssima experiência grega narrava o maravilhoso do presente, esses novos mitos, desgostosos de um presente ruim, começaram a imaginar bons futuros. Por causa do título do livro em que o inglês Thomas Morus se dedicou a isso, começou-se a chamar de utopia esses mitos futuristas. Por uns poucos séculos foram formuladas utopias. Que é como dizer: cansamo-nos um tanto das objetividades científicas e lógicas filosóficas e começamos a investigar, a sério, o que ainda poderia ser. O que, quem sabe, viria. Saímos um pouco da camisa de força do “o que é, é; o que não é, não é”. Porque algo pode vir a ser. E pode ser melhor. Definitivamente melhor. Transformador, até a raiz, do mundo e seus males. E aprendemos com os antigos cristãos: há um Reino à mão, que está sempre vindo. E redimirá a Terra.

Vivemos entre realidade e utopia, objetividade e esperança por algum tempo. Agora um novo momento de corte parece estar em movimento, o chamado pós-moderno. O pós-moderno é pós-utópico. Diz-nos que a História finalmente acabou, e que as utopias de um futuro bom, de esperanças realizadas, são meras narrativas, um tipo especial de mitos urbanos: boatos, ouvir-dizeres. Fake news. O futuro acabou!

Onde estão agora os Homeros? Os poetas narradores de mitos? Precisamos deles para reencontrar a harmonia dos deuses, dos homens e da natureza. Reaprender as utopias. Sonhar novos futuros. Procuram-se poetas!

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)