A Estrela da Esperança
Imagino casais se amando debaixo de Aldebarã. Sob B 612 tenho dúvidas
Publicado no jornal O Globo (06/01/2018)
As estrelas não falam. Têm, quando descobertas pelos astrônomos e oficialmente incorporadas ao mapa do céu, às vezes bonitos nomes. Aldebarã. Alpha de Centauro. Cassiopeia é constelação, mas o nome é tão bonito... Às vezes levam siglas burocráticas: B 612. Imagino casais apaixonados se amando debaixo de Aldebarã. Sob B 612 tenho minhas dúvidas. E no entanto é a casa do Pequeno Príncipe. Tem um tremendo encanto. Mas nome ruim. O certo é que, apesar de podermos chamá-las por seus nomes, não respondem lá do seu horizonte profundo. Apesar do testemunho em contrário de Bilac, que passou noites acordado conversando com elas. E revelou que é preciso amar para entendê-las. Pois é mesmo. Sobretudo essa, que se levantou sobre um presépio no Oriente Médio. Uma que tem um nome tão bonito: a Estrela da Esperança.
Sobre a manjedoura não se poria uma estrela qualquer. Para chamar a atenção do mundo inteiro, encantar os pastores e trazer de longe os Reis que hoje estão chegando, era preciso que fosse especialíssima. Sagrada como os arcanjos que dão as notícias mais importantes à Humanidade. E que tão raramente vemos. (Maria viu. Maomé também. Poucos outros.) Sagrada e brilhante como um arcanjo. E, se lá dentro do estábulo dormia o Amor, e aqui fora os pastores se ajoelhavam e os Reis vinham adorar, tudo coisas de fé, sobrava a essa estrela o nome de Esperança. A Estrela da Esperança.
As coisas iam mal na Judeia daquele tempo. A dominação imperial de Roma limitava liberdades e cobrava impostos. O povo, pobre, dobrava-se com resignação, mas também com orgulho, a esse mando sem alma. Com orgulho, pois aquele povo judeu lutou com Roma altivamente. Não porque tivesse poderosos exércitos, líderes guerreiros como já tivera no seu passado. Lutou porque tinha um Deus. Um só. Não a multidão dos deuses romanos, gregos, egípcios. Um só. O Sem Nome. O que não podia aceitar “acordos culturais”, que começavam pela renúncia ao modo especial de experimentar a transcendência daquele que até hoje chamamos “o povo escolhido”. Porque, para quebrar um povo, derrotá-lo na alma, é sempre preciso roubar seu tesouro. O tesouro do povo da Judeia era seu Deus. Roma não conseguiu extirpá-lo dos seus corações. Quando, em 70/71 do que chamamos “a nossa era”, venceu-o em batalha definitiva, precisou arrasar seu templo e dispersá-lo pelo mundo. Para cujos quatro cantos levou seu Deus nunca vencido. O povo judeu lutava com orgulho porque tinha esperança. O Messias viria, estava vindo. Libertaria seu povo de todos os jugos terrenos. Naquele cocho humilíssimo podia estar o Messias. Porque uma estrela brilhava sobre ele. A Estrela da Esperança.
Os pastores, quando se levantaram da contemplação abismada em que ouviram até a voz de Deus, podiam ter-se erguido profetas. Voltaram ao pastoreio, para sempre encantados. Mas podiam ter-se tornado profetas, como os houvera há tanto tempo em Israel. Profetas... Não adivinhos, que anunciavam os males escondidos no futuro, como aquela Cassandra que vagava pelos muros de Troia chorando a derrota iminente diante das tribos do que depois se chamaria “a Grécia”. Nem aquele Tirésias, que avisou Édipo de que ele se daria mal se insistisse em continuar investigando por que os deuses puniam Tebas com a peste. Troia caiu mesmo, Cassandra viu bem. E Édipo se deu muito mal, Tirésias tinha razão. Eram adivinhos, dominavam a arte da divinação, de ver o futuro com olhos claros. Mas não eram profetas. Os profetas tinham como matéria o tempo dos homens presentes. Levantavam-se acusadoramente diante dos reis, iam à praça denunciar os crimes e os pecados do povo, dos sacerdotes. Não vaticinavam por verem o futuro. Era por conhecerem a justiça de Deus e sua vingança. (Então era assim que o viam, juiz e vingador: “A vingança é minha, diz o Senhor”, está no “Deuteronômio”, um dos seus livros sagrados.) Os profetas acusavam os grandes, também os pequenos, por se terem desviado de Deus. E viverem no Mal. Eram os clarividentes do tempo de agora.
Os pastores podiam ter-se levantado profetas. Indo e pregando e avisando, porque o Messias estava próximo: “O machado já está posto na raiz da árvore.” Não fizeram. João, o anunciador, o disse. Era um modo de encarnar a esperança, esse de anunciar a justiça dos machados. Mas em verdade, em verdade, o Profeta era ainda tão pequeno e envolto em faixas...! Quando, 30 anos depois, sua boca se abriu para falar ao povo, sua profecia foi amorosa. Já não falou de vingança. Falou de amor. E de perdão. A Estrela da Esperança lhe ensinou o perdão. Ele nos ensinou o Amor. Nós o ouvimos mal. Uma raça de profetas devia se levantar agora e cantar sob a luz da Estrela da Esperança. Seriam os verdadeiros magos, os que anunciam a paz ao mundo.
Podia ser assim. Assim seja.
Foto: Gustavo Stephan (O Globo)