De novo o relógio girou 24 vezes 365 dias (quase lá). Um ano vai acabar. Diremos que é nosso passado. E o “Ano Novo” vai começar. No momento dos fogos, esse ano ainda não terá acontecido de verdade. Será futuro. Mas já terá um nome próprio, 2018, e já carregará toneladas de esperanças e listas de bons propósitos. Todo mundo vai ser melhor em 2018. Tratar melhor os filhos. Fazer alguma coisa social. Retomar as aulas de contrafagote. Rezar mais. Quando nos desejamos “Feliz Ano Novo” é como se estivéssemos dizendo: Olhe lá, Ano Novo, estou cheio de boas intenções. Agora depende de você. É meio uma transferência de responsabilidade. Não é boa coisa.
Nós temos um fetichismo de relógio e calendário. Temos fome, olhamos o relógio. Ainda é cedo para o almoço. A fome continua. Do mesmo modo olhamos o calendário e de repente nos assustamos: Meu Deus, amanhã é Ano Novo! E eu aqui vivendo meu tempo comum! Se essa pessoa vivesse lá num interiorzão onde a mídia não invade o tempo natural — sol que levanta, dia que começa, fome que bate, hora da boia, sol que se põe, tempo de pitar um cachimbo perto do fogo e ir dormir — no dia seguinte ela se levantaria e retomaria a vida e não se daria conta de ter sido cronotransportada. E não ficaria infeliz. O tempo continuaria correndo como o regato perto da casa. Não há Regato Novo. Quando houver, aí sim, o tempo terá mudado. — Cadê o regato que ontem mesmo ainda corria aqui? E aí “ontem” e “hoje” fariam um sentido verdadeiro. Teriam tocado o mundo e a vida. — Escolhi, claro, um exemplo extremo. Esse interiorzão talvez não exista mais. Mas os exemplos extremos em geral são os que permitem ver melhor as realidades ou os absurdos.
Penso também no horário de verão. Particularmente eu gosto. Acho simpático que ainda esteja claro quando termino o meu trabalho. Mas o sol não está nem aí para o nosso relógio adiantado uma hora. Por isso acordamos ainda no escuro. O sono não acabou. Mas o sol é pontual. Sua hora tem a ver com rotação e translação em volta do sol. Os nossos ponteiros são tentativas frágeis de controlar o sol. Como não é possível, acreditamos ter controlado o tempo. “Vou dormir uma hora a mais hoje.” “Perdi uma hora de sono no fim do horário de verão!” Dias de 25 horas, de 23. Isso são convenções, mas dizemos essas coisas como se fossem verdadeiras. Ficamos grudados no relógio. Bateu meia-noite adiantamos ou atrasamos, e o tempo entra nos eixos. E ficamos mais uma hora acordados ou vamos dormir mais cedo. Porque é o relógio que regula o sono.
Penso também em outras culturas. A judaica já está no ano 5778. Desde setembro. Eles comemoraram o ano novo, o Rosh Hashaná, enquanto nós íamos vivendo o nosso tempo comum, ainda no calendário “desse ano”. Os chineses também têm seu novo ano. Dão-lhe nomes de animais. Há o do Cavalo, o do Porco. Não é preciso fazer propósitos. O ano se encarrega de nós. No hinduísmo o tempo tem uma contagem muito mais larga. Uma época se mede pelo tempo de uma respiração completa do deus Brahma. São milhares de anos. Não há ano novo enquanto Brahma inspira e expira. Mas os hindus foram colonizados pelos ingleses, reis do relógio. E há um ano novo por lá também. Os antigos gregos mediam o tempo pelas Olimpíadas. Tantos anos depois da décima Olimpíada. Mudança de estação, sim. Mas só.
Não tenho nada contra os festejos, fique logo claro. Talvez devesse ter dito isso lá em cima. A essa altura haverá gente tuitando contra a minha insensibilidade. Ao contrário, todo pretexto para festa é bom. A festa é, na verdade, o que interrompe e revira o tempo. O ano nem está aí. Mas os fogos o convocam, ele acha estranho — corria tranquilo — e se apresenta de roupa nova. Amarelo para dinheiro, branco para a paz, uma roupa nova, uma velha, tudo propiciações do tempo. É bonito. São rituais alegres. Quem não gosta de rituais alegres? Depois, mal não fazem. Mas o tempo não muda nada. Corre impassível. Os ponteiros se encontram, 2017 e 2018 coexistem por um milissegundo. Depois se separam, e adeus ano velho, feliz ano novo!
Sim, por que não? Feliz Ano Novo. Vamos ter Copa e eleições. Podemos ser campeões — é o hexa! — ou ficar nas quartas de final. Depressão. Nas eleições podemos ter surpresas pavorosas. Ou, quem sabe, não. O tempo só tem a ver com isso porque marcaram esses eventos no calendário. Vamos esperar. Ver que ano os fogos da meia-noite nos trarão, já que a festa é para isso.
O que não passa, é eterno, é a esperança. As esperanças que depositamos hoje num mundo fraterno serão as mesmas de amanhã. Vamos então nos cumprimentar assim, passada a euforia e retornado o tempo comum: boas esperanças, amigos. Que o tempo continue. Quem sabe um futuro venha, ano novo ou não. Uma terra nova, redimida. Aí sim.
Feliz Ano Novo!