Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Sem presépio

A esperança volta sempre. A desesperança também. É assim

Publicado no jornal O Globo (23/12/2017)

Na minha infância não houve presépio. Havia um imenso pinheiro, cada ano cortado fresquinho no jardim da casa dos nossos pais, alto de quase alcançar o teto de um pé-direito respeitável. Imponente. Assim que ele entrava uma cortina era pregada na sala onde ficava o piano, e agora era o seu reino. A sala do pinheiro. A partir de então as crianças não podiam vê-lo. Tentávamos bisbilhotar pelas frestas, mas a árvore ficava invisível até o momento certo da sua revelação. Enquanto isso, transitava da natureza para o sonho. Nossa mãe o enfeitava com mais luzes de boa carnaúba do que teria havido estrelas no céu de Belém na noite do Menino. E bolas de todas as cores, azuis, vermelhas, amarelas, verdes, douradas, que, acesas as velas, brilhavam como a luz do Anjo. Bonecos de papais-noéis, bengalas, estrelas — uma grande lá em cima, como a que guiou os pastores. E fios de prata descendo de cada galho como neve. Era linda. Depois da ceia entrávamos e nossa mãe estava ao piano tocando “Noite feliz”. Cantávamos. À esquerda, o pinheiro nos dominava. À direita, com o canto dos olhos, envesgávamos para os presentes. Era lindo o nosso Natal. Mas não tinha presépio.

Cresci e casei. Na casa dos meus sogros havia presépio e auto de Natal. Nossa filha foi estrela e pastora. Lia-se, para quem quisesse, o Evangelho do dia, contando a história toda desse nascimento extraordinário. Era mesmo muito bonito. O problema era outro: nesse meio tempo eu tinha perdido a fé. Assim, sem mais. Parecia forte, a minha fé de menino. Não devia ser. De modo que agora havia presépio, feito peça a peça pelas mãos delicadas e carinhosas da minha sogra. Quem não estava lá era o menino que tinha crescido à sombra da árvore. O presépio estava. Eu é que não estava nele.

Um dia, já na casa dos 50, talvez Deus tenha achado que o exílio já tinha durado demais. Quase 40 anos! E eu tinha saudades dele. Não sabia onde encontrá-lo. Ele sabia. E voltou. Voltei. Ainda em tempo de entrar simbolicamente como pastor penitente no presépio dos meus sogros. Hoje temos na nossa casa um presepinho. É como uma torre. Embaixo estão a manjedoura, o Menino, Maria, José e os Magos. No segundo andar um pastor e as ovelhas. Não estão o burro e o boi. O presépio é alemão. Não sei se isso explica. Mas não estão. Em cima há pás que, aquecidas por velas acesas no primeiro andar, fazem rodar o presépio todo. É bonito. No calor ele gira e muda de figura. Às vezes o Menino está bem perto. Às vezes quase se esconde do outro lado. Penso que é assim mesmo. Não é sempre que o vemos, nas nossas vidas comuns. Na maior parte das vezes, talvez, não. E que pena é isso! Nosso presepinho conta da presença e da ausência, dos nossos olhos que se enganam (porque o Menino está sempre ali). Fala de esperança e desesperança. Mas gira, gira. A esperança volta sempre. A desesperança também. É assim. Nosso presepinho diz com beleza como gira Deus nas nossas vidas. Até que as velas se apagam, as pás se imobilizam e nada se move mais. Fico apostando: se o Menino parar virado para cá... Vamos ver amanhã.

Tenho um motivo para contar uma história tão pessoal, a do menino sem presépio, a do presépio sem o jovem que tinha sido o menino, a do presépio com o adulto que resgatou o menino sem presépio. No fim, tudo acaba bem. Tenho pena do menino que não teve presépio e do jovem que não entrou nele. Mas agora estão todos reconciliados no presépio em que o Menino gira: está, não está... Esperança, desesperança... Porque a vida é desse jeito.

Escrevi tão em primeira pessoa porque os meus votos de Natal dessa vez são assim: que cada um se ocupe do seu presépio. Há meia Humanidade que talvez não tenha nenhum — mas viva dentro dele. O cocho, o pai e a mãe tão pobres, tão pobres... O menino dos seus pais não sabe, na sua inocência esfarrapada, que ali está, nele, o Menino de todos nós. Para a outra metade o presépio vai deixando de ser óbvio. Há talvez gente demais que não tem olhos para a maior evidência: “Hoje nos nasceu um menino.” E não adianta fazer propaganda, tocar sinos: quem não vê, não vê; quem não ouve, não ouve. Cabe, quem sabe, a cada um de nós mostrar seu presépio. Pôr-se perto dos mais próximos em contemplação, como os pastores. Visitar os vizinhos, os de perto e os distantes, como os Magos. Cuidar para que o Menino esteja no cocho em que, há dois mil anos, não cessa de nascer.

Meu amigo Chico Alencar me ensinou que a manjedoura deve ficar vazia até a meia-noite de amanhã. É só então que deitamos nela o Menino. Falta um dia e pouco. Ainda é tempo de o procurarmos. E não deixarmos nenhum menino sem presépio, nenhum presépio sem Menino.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)