Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Flor das catacumbas

Há uma santidade nas profundezas que não é para ser desvendada. Elas contêm milagres

Publicado no jornal O Globo (16/12/2017)

Ninguém sabe de verdade como é o subsolo das flores. Haverá, claro, especialistas em solos que podem responder. Aprenderam cavando profundidades. No caminho, mataram as flores. Esse é, francamente, o tipo de conhecimento que não me interessa. Deixemos em paz os subterrâneos e seu mistério. O silêncio do que é profundo e soturno, mas dá à luz da vida a beleza das superfícies floridas. Há uma santidade nas profundezas que não é para ser desvendada. Elas contêm milagres.

Nos primeiros séculos os cristãos viveram nas catacumbas de Roma. A cidade imperial não se arranjava bem com essa comunidade alegre e apaixonada. Pessoas cheias de Deus, que profetizavam fora dos hábitos da religião cívica desacostumada da transcendência real do Deus que os cristãos tinham aprendido com os judeus. Os deuses romanos também eram gregos, egípcios, mesopotâmicos. Um rei morria, viam-no perder-se na bruma, e se tornava um deus. Era assim que os habitantes de Roma experimentavam sua religião. O Deus novo, trazido de Jerusalém, passando pela Síria e a Grécia, era mais exótico do que o Cão Anúbis dos egípcios, que tinha templo em Roma. Os cristãos eram fracos, tinham um deus só. Mas um deus forte, porque era um só. Muito poder. Sem nome, de tão transcendente que era. Chamavam-no Pai. Pai não é nome de Deus... Comparado com Jupiter Optimus Maximus... Estranha, essa divindade estrangeira sem rosto.

E seu povo, mais estranho ainda. Gente pobre, na maioria, mas também ricos, soldados, centuriões, sábios. Reuniam-se para ler um livro sagrado, discuti-lo, narrar prodígios de um galileu que foi crucificado na Judeia, por decisão reticente do governador romano. A cruz era pena de escravos. Aquele homem era um escravo? Chamavam-no rei. Com maiúscula, de boca cheia: o Rei. Como se só houvesse um. E não era César. Um que dizia que seu Reino não é desse mundo. Como não é desse mundo? Só há esse mundo. O tal Rei estava morto. Crucificado, coisa infamante. Morto. E há, é verdade, um mundo subterrâneo, ad inferos, “no inferior”. Esse Rei regia os mortos? Não. Plutão era o deus das sombras. Um rei usurpador? Um deus perigoso? E seu povo, um bando de solapadores das antiquíssimas tradições dos deuses romanos?

O certo é que os adoradores desse deus sem estátua, sem templo nem casta sacerdotal, cuja representação era um peixe — um peixe!, nem mesmo o pão e o vinho essenciais à vida diária dos romanos, um peixe! — os adoradores desse deus não eram bem vistos. Não cumpriam as leis da Cidade, andavam pelas margens. E não tinham as grandes virtudes políticas e militares. Eles se amavam! Só isso. Havia quem se espantasse: “Vejam como eles se amam!”. Mas uma cidade não se constrói sobre esse sentimento de mulheres e crianças. Gente pouco viril.

E os cristãos foram parar na arena do Circo Máximo, para alimentar leões. A política do pão e circo, que mantinha os pobres de Roma quietos na maior parte do tempo, veio a ter novos gladiadores. Mas os cristãos não lutavam. Conta-se que se ajoelhavam diante dos leões. E que não tinham medo. E morriam rezando ao deus desconhecido. Talvez fossem lendas, o povo gosta de se identificar com os que se parecem com ele. Perigosos, esses cristãos.

E, para se defenderem das perseguições e praticarem em paz os atos da sua fé, eles acabaram se abrigando nas catacumbas. Foram mesmo encontrar liberdade no mundo de baixo, os inferos, que alguém depois traduziu por “inferno”, e virou lugar de condenação. Os inferos das catacumbas não eram castigo, eram proteção e paz. Dali brotariam flores amorosas.

Corte para quase dois milênios depois. A grande Igreja saída das catacumbas, poderosa agora como um dia fora o Império, precisava de reformas urgentes. Tinha se afastado da pureza do amor. Uma doação do imperador romano a tornara potência territorial. A Igreja passou a viver acima do solo. Precisava reencontrar o caminho das origens. Isso foi tema polêmico no Concílio Vaticano II, entre 1963 e 1965. E fez-se, nos subterrâneos do Vaticano, o “pacto das catacumbas”. D. Helder estava lá. Abandonar a vontade de poder. Aproximar-se dos pobres que seguiam Jesus. Recuperar a doçura da misericórdia. Foi bonito e heroico. E deu flores aqui em cima.

Penso às vezes que no estado atual do mundo aqueles que cremos num futuro pacífico e amoroso devíamos voltar às catacumbas. Limpar nossas feridas, praticar o amor, dar aqui e ali testemunhos de beleza e bondade à flor da terra. Um dia emergiremos. Floresceremos. Já aconteceu uma vez, quando era uma religião. Agora será um mundo. E o caminho das catacumbas não é distante. É pertíssimo. São os dois palmos que vão do nosso cérebro que pensa demais ao nosso coração que ama de menos. Entre a estrela e a manjedoura. Daqui a uma semana vai se repetir. Podíamos estar atentos dessa vez.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)