O cavalo de Turim
Nietzsche não era doido. O que o incomodava era o uso que os poderes fazem da 'ideia de Deus'
Publicado no jornal O Globo (09/12/2017)
O homem de grandes bigodes carrega atrás de si um baú enorme pelo ar muito frio na direção de uma pousada acocorada no alto da montanha. A janela do seu quarto abre sobre serras e vales, pedaço de mundo dentro do qual ele gostaria de estar. Arruma as roupas, os livros, copos, talheres, essas coisas da vida que sempre arrasta atrás de si. Pela estação fria, pelos altos montes. Sozinho. O homem é orgulhosamente sozinho. Põe sua mesa de trabalho de frente para a janela, para que o mundo esteja sempre lá enquanto ele escreve. Para que não corra o risco de escrever de costas para o mundo. Esse homem gosta do mundo, e da vida. Não gosta dos algozes da vida e do mundo. Friedrich Nietzsche é um homem torturado. Fecha a porta do quarto e vai caminhar. É um grande caminhante. Puxa atrás de si a sua sombra.
Quase foi pastor. Espalharia a palavra de Deus. A Palavra. Foi um grande cultivador de palavras. Por causa delas acabou professor de filologia. E matou Deus. Quer dizer, não matou Deus, porque, se ele existe, não morre, se não existe, não morre também. Nietzsche sabia disso, é claro. Era a ideia de Deus que o incomodava. Escreveu: “E o homem, em seu orgulho, criou Deus, à sua imagem e semelhança.” Criou Deus. Não imaginava que um dia o Homem, lá no teto da Capela Sistina, em Roma, onde Michelangelo pintou sua extraordinária Criação, tivesse invertido a posição ligeiramente abaixo de Deus em que o pintor o representou e querido que fosse o seu dedo que, tocando o do Outro, o trouxesse à existência. Nietzsche não era doido. O que o incomodava era o uso que os poderes fazem da “ideia de Deus”.
Pensava assim: as ideias mais vazias, restos de fumaça, pedaços de nuvem às vésperas de se esgarçar e desaparecer não deviam ter lugar na vida da humanidade. O Ser, o Indeterminado, a Perfeição, Deus. Coisas assim. Mas elas existem. Muito bem, seja. Mas fiquem lá no fim da linha, no lugar que, já que insistem em se apresentar, deveria ser o seu: o do fim de linha. Mas não. Os filósofos têm a mania (“idiossincrasia”, ele diz) de inverter as coisas, e acabam pondo essas ideias esfiapentas como fundamentos! “A humanidade pagou caro pelas dores de cabeça desses senhores tecelões de teias de aranha!!” É assim que ele sentencia essa mania de pôr o último em primeiro lugar.
Foi assim que o homem criou Deus. Não o tirou de nada, como Deus fez com o Homem, e Michelangelo sabia. Tirou-o da mania de querer um absoluto como fundamento de tudo. Porque o homem, pensava Nietzsche, tem medo. Do caos do mundo. Da potência da vida. O homem, esse homem, precisa morrer. É o último homem. Perdeu toda a vontade. Tem uma “vontade de nada”. Está no fundo do poço. Tornou-se demasiado humano. Na verdade, um camelo, carregando sobre as corcovas o peso de todos os valores inventados por Sócrates (Sócrates foi o inimigo mortal que Nietzsche escolheu para si) para julgar e condenar a vida. Para esconjurar o caos. Mas o caos é bom, “é preciso ainda trazer um caos dentro de si para acordar uma estrela que dança”.
Nietzsche amava as estrelas que dançam. E andar à beira dos abismos. E arriscar-se a não ser entendido pelos seus contemporâneos (que mal o liam). Ele pensava que a verdade é “subterrânea, visceral e suja”. Os homens do seu tempo eram vidrados em uma História linear, toda construída a partir de um passado estável, garantia de ordem e repetição. Mas ele dizia que é preciso ser injusto com o passado, não venerá-lo, para deixar vir o futuro, “grávido do novo”. Era difícil entender Nietzsche. Ele sabia. A uma senhora que lhe pediu um dos seus livros ele o desaconselhou. Só vai lhe fazer mal. Porque ele batia, massacrava as ideias dos filósofos, moralistas e religiosos, os inimigos da humanidade. Um dos seus últimos livros tem o título “O crepúsculo dos ídolos”, e a seguir, como uma profissão de fé: “Como filosofar a golpes de martelo”.
Um dia Nietzsche caminhava por Turim, no norte da Itália, quando viu um cavalo, magnífico, símbolo da força e da liberdade, ser violentamente chicoteado por um cocheiro desatento à potência de vida que o animal representava. Talvez tenha enxergado no cocheiro uma máscara de Sócrates. E, no chicote que arrancava o sangue nobre do animal, aqueles “valores superiores” com que Sócrates julgava e condenava a vida. E se abraçou ao cavalo, tomou o partido da grande força esmagada pela grande condenação. E perdeu os sentidos. Perdeu a razão. Em linguagem comum, enlouqueceu. Viveu mais 11 anos sem saber que era Nietzsche. Essa foi a época — a História pode ser tão cruel! — em que o mundo o descobriu. E ele ficou famoso.
Já não lhe importava. A loucura, sua última grande obra, foi a consagração de um longo percurso dedicado à libertação da vida. Nietzsche se abraçou ao cavalo de Turim. O resto é história.
Foto: Gustavo Stephan (O Globo)