Os poetas salvam o mundo
Eles não buscam conhecer nem encontrar respostas: eles esperam
Publicado no jornal O Globo (02/12/2017)
Heidegger, no século XX, mais de uma vez se valeu dos poetas quando seu pensamento chegava ao limite e a filosofia embatucava. Escreveu que o pensador tem uma vizinhança benfazeja, a do poeta que canta. Num dos momentos mais belos das suas reflexões, na grande fase em que renunciou aos tratados e escreveu excepcionais ensaios, chegou ao limite absoluto da filosofia. Ao Mistério, que nem o pensamento nem a linguagem filosófica conseguem penetrar. E o pastor que encontrou para pôr perto do Mistério foi o poeta. Porque os poetas não buscam conhecer nem encontrar respostas: eles esperam. Serenamente. Esse ensaio, “Serenidade”, devia estar nas nossas cabeceiras.
Antes dele, no grande século XIX, também Nietzsche apelou para eles. Encurralado pela ciência que tomara o trono da Verdade, com suas descrições só quantitativas e seu arsenal de provas, Nietzsche escreveu que precisava da arte para não morrer da verdade. Queria encontrar a origem da nossa cultura ocidental, aprender a contar sua história. A ciência e a filosofia não o levariam lá, com suas lógicas descarnadas. Nietzsche foi o profeta da potência da vida. E foi encontrar nossos começos no século VI a. C., entre os poetas trágicos. Os que sabiam que os homens e mulheres são infinitamente mais fracos do que os deuses, que manejam os fados, e as cidades, que impõem as leis. Mas lutam. Têm essa extrema beleza: guerreiam as guerras impossíveis. Perdem. E entram na imortalidade.
Pouco depois, no século IV a. C., começo oficial da filosofia, Platão deve ter se defrontado com o problema de como escrever quando as questões mais radicais do mundo e da vida precisam ser formuladas. E criou um gênero literário, o diálogo, que até hoje lemos com emoção. Num diálogo há pessoas. São falhas. Dizem bobagens. Revelam sentimentos baixos e interesses escusos. E também, nos diálogos, cheios da vida real das pessoas, de repente lampeja a verdade. Platão sacava a verdade de dentro da beleza literária dos seus diálogos. Seu aluno Aristóteles preferiu os sisudos tratados. A filosofia acabou com a boca torta por esse cachimbo da lógica feroz. Foi perdendo a coragem perigosa dos que usam a filosofia para cuidar, confessar, ensaiar, guerrear, tudo em nome da vida. E escrevem como poetas escrevem.
Houve Sêneca, Cícero, Lucrécio, Marco Aurélio ainda na Antiguidade, que filosofaram como quem cuida da vida e protege a felicidade (deviam estar sempre ao alcance da nossa mão); Santo Agostinho, no século V, que pensou virando sua vida para fora nas suas “Confissões” (outro para se ter na cabeceira); Montaigne, no XVI, que pensava ensaiando, não sabendo (vamos pôr seus “Ensaios” ao pé da cama, junto dos outros); Pascal, no XVII, que também não construiu sistemas, escreveu “Pensamentos” (cabeceira para ele!); e Nietzsche, que inventou os aforismos, e escrevia aos solavancos, aos arrancos de sabedoria e beleza. (Não se esqueçam de um lugar de honra para os seus livros-bomba. Ponham-nos junto de Platão. Ele detestaria a proximidade, mas é justa). No século XX, não sei. Parece que Foucault. Ainda precisaremos de tempo.
O resto é sistema fechado. São matemáticas do mundo, gramáticas da vida. É tudo grandioso e cheio de poder. Aristóteles! Santo Tomás! Spinoza! Kant! Nunca os abandonaremos. Mas quando estamos aqui, na planície, e o ar pesa e a esperança tarda, é uma alegria saber que houve esses que tocaram com beleza a pele da vida, e se arriscaram no não saber, e se pareciam tanto conosco. Nós, os que avançamos gemendo, os que ensaiamos e erramos, os que nos pomos diante dos nossos irmãos e reviramos a nossa alma em confissões. Nós, os do limite do horizonte, onde a cultura pós-moderna e as sociedades da grande exclusão nos dizem que o sol pode se pôr pela última vez sobre o mundo. Nós, os do desespero e da esperança. Nós, pesados de sistemas, precisamos dos poetas. Os poetas pensam, porque sobem acima do que apenas banal.
Já mostrei aqui o poema de Lorca, que cantou a morte do amado, o toureiro levado pelos chifres e o resfolegar do touro. E várias vezes citei o lindo verso de Drummond: “É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. E de Manuel Bandeira: “Vi ontem um bicho/na imundície do pátio. (...) O bicho, meu Deus, era um homem.” Procuro Adélia Prado e encontro: “Estou com saudade de Deus,/uma saudade tão funda que me seca”. São poemas tristes? Não. Constatam nossa condição e extraem dela beleza. Transcendem. E nem falo dos grandes místicos, Teresa de Ávila, João da Cruz. Esses bastam para dar luz a um dia que se anuncia enfarruscado.
Pronto. Agora posso ir dar a minha aula de filosofia. Desconfio que vai ser boa, porque os poetas me fizeram feliz.
Foto: Gustavo Stephan (O Globo)