Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Os homens bons

Faz sentido uma esmola ser ignorada por estarmos hipnotizados pelos futuros radiosos?

Publicado no jornal O Globo (25/11/2017)

Andamos bem devastados pelo mal. Acreditamos ter sido destinados à felicidade, mas, desde que o mundo é mundo, dela foram excluídos os párias da vida. Andamos arrasados pelo mal que exclui. E temos razão. Razão e coração. Mas o mal, o Mal, por mais que entre pelos nossos olhos todos os dias, e entupa os nossos ouvidos, e grude, visguento, na nossa pele, o Mal não alcança o mundo todo. Porque há as pessoas que organizam a bondade com gentileza e sem alarde. São homens e mulheres de todas as idades e condições. Antigamente se dizia, sem respeito a gêneros: os homens bons. Há os homens bons.

Nos dois últimos sábados eu estava contaminado pela sarna da desesperança. Não estou mais, parece. Mas escrevi uns artigos tristes. Mesmo um que intitulei “Se não fosse o consolo da esperança”. Esse lindo verso de Odylo Costa, filho, apareceu no apagar das luzes da coluna. O resto todo era tristeza. Porque a esperança estava, com vergonha o confesso, com água pelo nariz. Mais um pouco e seria levada pelo grande mar. Mas não foi.

Recebi de amigos e amigas uns antídotos que me fizeram bem. Uma me fala dos milhares de jovens que tomam iniciativas cheias de criatividade, inspiradas na solidariedade, com leveza e alegria. E lamenta que os holofotes só se concentrem nas coisas más. Rapidamente apaguei a lanterna com que andava desiluminando o caminho. Há, diz-me essa amiga, bonitos sóis. Pedi que ela me mandasse uns instantâneos desses lugares iluminados. Quando chegarem, conto aqui. Vai nos fazer bem. Enquanto isso, uso a minha lanterna filosófica (holofotes não tenho) com mais prudência. Com mais atenção ao bem que pode estar tão perto dos nossos olhos que não o vemos. E acabamos siderados pela contemplação do mal nosso de cada dia.

Outra, ex-aluna essa, me conta da instituição em que trabalha, que recebe moradores de rua. É um lar. Essa é a intenção. Não pode dar casa a todos, mas tem dia de corte de cabelo, barba e banho. Tem dia de dormir em casa. Tem dia de café com leite, pão e filme. Tem a muda de roupa limpa. E almoço, todo mundo junto em volta de uma mesa grande. Comoveu-me essa ternura que sabe que não vai salvar o mundo, mas nem por isso abandona as pessoas que o mundo jogou fora. Assistencialismo!, já ouço alguém objetar. Não resolve as questões estruturais! É verdade. Não resolve. Mas será mesmo que enquanto não se revolvem de alto a baixo as estruturas deve-se deixar apodrecer a vida das pessoas que andam por perto, ao alcance da nossa mão? Em nome de um futuro radioso de igualdade e paz devemos sacrificar o presente de tão duros sofrimentos? Na minha juventude era proibido dar esmola. A esmola (palavra que ficou mal vista, deixou de ser a pequena carícia feita à necessidade extrema) atrasava a Revolução. Mas faz qualquer sentido que o próximo mais próximo seja ignorado, com sua mão humilhadamente estendida, porque nossos olhos estão hipnotizados pelos futuros radiosos?

Também as igrejas (as históricas) assistem. Não têm poder para mudar o mundo de cabo a rabo. Mas podem matar algumas fomes. Cobrir alguns corpos. Abrigar do frio. Ensinar profissões. Organizar a solidariedade. Há quem veja — e são tantos! — com péssimos olhos o “sopão dos pobres”. Assistencialismo! Mas as fomes imensas assistidas por um prato de sopa quente podem ser vidas salvas. Naquele dia, pelo menos. Quanta indiferença é necessária para suspender a colher e recolher a sopa enquanto não se consegue mudar a realidade e instituir a harmonia universal? Que insensibilidade abissal, essa, que dificilmente será reformada...

Ouvi falar de uma loja de roupas criada por jovens em São Paulo. As pessoas entram, escolhem uma camisa, um agasalho, umas calças, agradecem e saem. Vestidas. Mas não pagam nada. Não podem, não têm. Não é uma loja de vender, é uma loja de dar. Assistencialismo? Nada. Organização da bondade. Pegar em si e, em vez de ficar solitariamente indignado com os males do mundo, ir lá e fazer alguma coisa. A possível. Porque as impossíveis não podem ser feitas. Aí há os que, diante dessa óbvia constatação, não fazem nada. E morrem de tristeza.

Tem já um tempo que não acredito muito na “eficácia do pequeno gesto”. Fechar a torneira enquanto faço a barba e salvar o planeta. Mas, diante do volume descomunal das necessidades do mundo, talvez precise rever esse ceticismo. Por causa do fator multiplicação. São sete bilhões de pessoas habitando o nosso planeta. Quantas haverá que vivem solidariamente com os que necessitam da solidariedade para viver? Um quarto? Dez por cento? Entre 7,2 bilhões de pessoas. É um belo multiplicador. Falta é organizar o bem. O mal parece que se organiza naturalmente. Uma internacional da solidariedade não é impossível. E essa é uma esperança do tamanho do mundo.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)