Se não fosse o consolo da esperança...
Os homens maus se consideram senhores da natureza e dos outros homens, de quem discordam
Publicado no jornal O Globo (18/11/2017)
Na semana passada, terminei a coluna com a citação de dois versos de Odylo Costa, filho: “não minha própria dor, a dor alheia/me poria uma pedra em cada braço”. Mas os versos eram três. Omiti o que diz aquilo que me traz aqui todos os sábados. O terceto completo é: “não minha própria dor, a dor alheia/se não fosse o consolo da esperança/me poria uma pedra em cada braço”. Omiti a esperança. Talvez estivesse habitado pelos antigos profetas, os que eram empurrados por Deus a se levantarem diante do rei e do povo para condenar as injustiças. E não deixei lá no fim, para acarinhar a alma de quem me lia, o “consolo da esperança”. Escrevi sem doçura. Não sei se dá para corrigir.
Em minha defesa digo que anda tudo muito mal. Muito mau. Da política às relações entre nações, do terrorismo às convulsões da natureza. Pouco há, à vista desarmada, de espaço amoroso para a esperança. Há dois que ameaçam apertar o botão vermelho das bombas do apocalipse. Um desses tinha prometido muros para dividir a humanidade, ainda não desistiu, e segue bloqueando a entrada no “seu” território dos que professam outra religião, ou têm outras características étnicas, que para ele representam o mal. Os povos da água, os navegadores noturnos do desespero continuam tentando atracar em portos de faróis apagados. Quando chegam a alguma parte são recolhidos, não acolhidos. O recolhimento lhes salva a vida. Mas a vida salva não é uma vida ganha. São hoje considerados um perigo para a Europa. Se não tivessem partido para o mar à procura de um Novo Mundo estariam mortos. E não seriam, de olhos vazios abertos para um céu vazio, perigo para ninguém. Mas quiseram viver...
E há os atentados. Eram elaborados, planejados como campanhas de guerra. Tinham rotas de fuga. E alvos. Depois deixaram de ter alvos: vale qualquer um, desde que em nome de um Deus que há de estar chorando de tristeza e vergonha. Agora já não precisam de planejamento. Nem fabricar bombas. Pegam o que estiver à mão, carro, faca. Esfaqueiam, atropelam — e gritam o nome de Deus. Do outro lado (sim, estão voltando a existir só dois lados, e vive cada um para a aniquilação do outro), do outro lado há drones, que atacam cirurgicamente, bisturis do mal tombando do céu. E, como em tantas cirurgias, matam tecido bom, que não devia ser cortado pelo fio mortal. Chamam-se esses de danos colaterais. Casualidades. Não são para se fazer caso. Erros acontecem.
Há também as leis injustas. As que congelam a educação e a saúde por 20 anos num país que parece sem futuro (mas a educação poderia inventar um) e sem dignidade (mas boa saúde seria um começo para reencontrá-la). Um país que já foi rico, deixou de ser, quer recuperar seu ranking, mas não se comove com um povo pobre. Até um general-presidente da ditadura soltou um dia uma sentença assim: “A economia vai bem, mas o povo vai mal”. Nem essa constatação justa feita por um homem injusto mobiliza mais os fechadores de contas. É preciso fechar uma conta no final do ano. Está difícil. Então, cortem-se benefícios, como se fossem mimos a um povo vadio; aumentem-se alíquotas de contribuição nos contracheques dos servidores públicos (afinal, eles já ganham tão bem...); fechem-se aqui e ali as torneiras dos programas que não erradicavam a pobreza, mas mitigavam a sede dos pobres. Se não bastar, inventem-se outras grosserias contra as vidas mais frágeis. Talvez essa nem seja uma intenção malévola explícita. Mas é preciso fechar as contas.
Há também os males naturais. Agora mesmo um grande abalo sísmico matou centenas no Irã e no Iraque. Recentemente, outros espalharam terror e desamparo em vários pontos do mundo, das Américas à Ásia, indiscriminadamente. A natureza se revolta e arma seu terrorismo natural. Em 1755, houve um grande terremoto em Lisboa, que quase acabou com a cidade. As melhores cabeças pensantes da Europa se dividiram na avaliação daquele mal. Era um mal, claro. Mas teria vindo de Deus, para se vingar dos pecados do povo, ou não seria mais do que um acidente da natureza? Um mal natural? Foi uma discussão acesa. E a balança pendeu para o mal natural. Retirou de Deus o humano espírito de vingança. Deus ficou mais leve. Hoje, os homens rivalizam com o antigo Deus da vingança. Tomam o seu lugar e, às vezes agindo em seu nome, distribuem o terror e a morte. E acham que está bem. Que é natural. Os homens (os maus, permitam-me dizer assim, sem cerimônias filosóficas) se consideram senhores da natureza e dos outros homens, de quem discordam, e se investem no direito de produzir terremotos de Lisboa sempre que a balança do poder se entorta contra eles e é preciso reequilibrar, fechar as contas. O equilíbrio da morte. Andamos perto dele.
Se não fosse o consolo da esperança...
Foto: Gustavo Stephan (O Globo)