Uma pedra em cada braço
Para Nietzsche, devíamos dar mais atenção às nossas entranhas do que ao nosso cérebro
Publicado no jornal O Globo (11/11/2017)
Nietzsche foi um demolidor. Tinha por intenção, mesmo, não deixar pedra em pé da construção de dois milênios de filosofia, moral e religião. Tinha lá suas razões. Diagnosticava uma vida totalmente despotencializada no seu século XIX, uma vontade de nada. E essa decadência em relação à antiga glória da vida na época trágica dos gregos tinha culpado. Era Sócrates. Nietzsche nutria um ódio mortal por Sócrates.
No seu século V a. C. Sócrates inventou valores para bem pensar e bem viver. Para a verdade e a felicidade. É só ler alguns dos diálogos de Platão que estão todos lá, um por um, esses valores: a verdade, a beleza, a justiça, o bem. Quem vivesse segundo esses altos padrões, ensinava Sócrates, teria sua alma descansando por toda a eternidade nas Ilhas Afortunadas. E isso é bom. A moral e a religião estavam de acordo com essa filosofia, e foram, as três juntas, guiando a humanidade por esse bom caminho. — Nada disso, revoltou-se Nietzsche 24 séculos depois de Sócrates-Platão e quase dois mil anos depois de Cristo. (Nietzsche também não gostava de Cristo. Escreveu um livro para dizer isso, “O Anticristo”.) Bom nada. O que esses valores, o belo, o bom, o justo e o verdadeiro fazem com a humanidade é pôr em espartilhos a vida. Amarrá-la a uma forma. Submetê-la a uma Razão absoluta, que a conduz pelo nariz. Pôr sobre as suas costas de camelo o peso desses (era ironicamente que os chamava assim) “valores superiores”. Impedir que a humanidade se liberte, vire leão, lute pela liberdade, até alcançar a inocência sem julgamentos da criança. Assim falou Nietzsche.
O filósofo que pensava a golpes de martelo morreu em 1900. Pouco mais de um século depois, quem diria que estaríamos pedindo de joelhos um pouco de justiça e verdade, de beleza no monturo de feiúra a que reduziram a vida. Um pouco de Bem, do bem para todos, do bem comum. O poço de Nietzsche não era fundo o bastante. O nosso é mais escuro do que o dele. Nem camelos mais os poderes que julgam e condenam a vida querem nos deixar ser. Como camelos quem sabe pudéssemos atravessar um deserto de sede. Preferem que fiquemos reduzidos a animais que rastejam, que têm os olhos postos ao rés do chão. Que perderam a bênção de um horizonte. Qualquer horizonte.
No século XIX os excessos da Razão triunfante, é verdade, sufocavam a vida. Muita ciência, corpo de menos, emoções sob controle demais. Nietzsche escreveu que se déssemos mais atenção às nossas entranhas do que ao nosso cérebro estaríamos talvez mais próximos da verdade. Que a verdade é subterrânea, visceral e suja. Ele estava lutando pela paixão, pelos instintos fortes. Hoje nos dizem que essa coisa de verdade já não significa nada. Que na época da pós-verdade só é preciso que as coisas funcionem. E máquinas são melhores de funcionamento do que pessoas. As pessoas podem estar sendo aposentadas da vida. Paixões, emoções devem ser canalizadas para o hedonismo e o consumo. O mundo ficou — não parece? — subitamente mais triste.
Não sei exatamente em quem Nietzsche pensava quando advogava pela vida. Sei em quem pensamos nós, aqueles que ainda somos tocados pela compaixão. Pensamos nos pobres, nos que vivem abaixo da linha d’água. Nos sufocados, nos exauridos. Naqueles a quem arrancaram as entranhas onde poderia estar (Nietzsche disse) a verdade. A mais verdadeira, que faz limite com a fome e a náusea. Aqueles a quem arrancaram os olhos e a esperança. Penso, pensamos nesses. São pesadelos de ignomínia.
Outro dia uma pessoa inteligente e culta me disse que não há verdadeiramente um problema em existir pobreza. Que o problema das sociedades é a desigualdade. — É claro, a desigualdade, como não? Mas não a pobreza? O banimento da festa, o ostracismo da cidade dos homens? — É verdade, nós que nos encontramos aos sábados nesse canto de página ouvimos falar da pobreza, da pobreza extrema. Às vezes chegamos mais perto e a vemos. Alguns a tocam, a cheiram. Mas nós não somos pobres. Por isso mesmo é que precisamos falar. Chamar de volta a verdade, a justiça, a beleza (há também uma fome de beleza), o bem. Porque a vida (Nietszche se enganou nessa) não é esmagada por valores manejados por filósofos, sacerdotes e moralistas. A vida é esmagada pela gula daqueles a quem a comida sobra. Pelo orgulho dos que olham para o outro lado. Pela cobiça. Contra esses valores maus e sem beleza, injustos e carentes de qualquer verdade é que nossas bocas devem se abrir em gritos espantados. Lembro-me dos lindos versos de Odylo Costa, filho, olhando para o sofrimento dos outros, frequentemente tão maior do que os nossos desconfortos e dissabores de vida: “Não minha própria dor, a dor alheia/me poria uma pedra em cada braço.” Estamos precisando disso. Olhos abertos, mãos sensíveis, e uma pedra em cada braço.
Foto: Gustavo Stephan (O Globo)