Os dos Sistemas, os da vida
Um sábio não precisa de filosofia, ele é sábio. São os ignorantes que, por desejarem, com o espírito e o corpo, viver com sabedoria, precisam fazer as perguntas filosóficas
Publicado no jornal O Globo (04/11/2017)
Dizemos “a filosofia”, no singular, acreditando que se trate de um saber unitário, agarrado em pressupostos universais. Como, pensamos, a matemática. Mas filosofia, no singular, ignora a multiplicidade das escolas que disputam a verdade. Às vezes de modo cruel: Aristóteles pôs os grandes pensadores do século VI a. C. fora da filosofia. Ficaram fora por 23 séculos. Quando voltaram, foi-se ver, eram fogos na escuridão. A filosofia teve vários começos, várias linhas de corte. Para o que nos interessa no talvez ocaso de hoje é uma que podemos inventar para nós: a que separa as filosofias dos Sistemas das filosofias da vida.
Fiz aqui há um tempo (nas colunas de 18 de fevereiro a 11 de março) uma seleção de filósofos do primeiro e do segundo time e os pus a jogar com a equipe dos pós-modernos. Deu empate, 4 x 4. Misturei os jogadores de Sistemas e os de vida. O empate foi bom. Andávamos apanhando um bocado. Mas agora, cabeça fria, vale a pena analisar o pedigree dos titulares e reservas. Porque outro jogo se aproxima. Vamos apostar num jogo de volta. E tentar ganhar em casa. — Vou contar uma história.
Lá no século V a. C., Sócrates, que se considerava sumamente ignorante, fundou a filosofia. Está bem assim. Um sábio não precisa de filosofia, ele é sábio. São os ignorantes que, por desejarem, com o espírito e o corpo, viver com sabedoria, precisam fazer as perguntas filosóficas. Sobre o sentido das coisas e da vida. A verdade. A felicidade. Sócrates pôs-se a perguntar. “O que é isso?” “O que é isso?’ Deve ter sido exasperante. Atenas o condenou à morte. Mas ele também se preocupava com os cuidados que os jovens tinham, ou não tinham, consigo mesmos. Como governariam a cidade se não fossem capazes de se governar? E também andava perguntando: “Você está cuidando de si?” Pergunta mais interessada na vida do que no conhecimento. Sócrates foi dois. Como convém aos grandes fundadores.
“O que é isso?” ganhou. A questão da verdade. Foi em torno dela que as grandes escolas lutaram e se destruíram reciprocamente. Mas sucede isso: a Verdade, assim, capital, precisa de Sistema. Tem de ter por baixo pressupostos metafísicos, axiomas inabaláveis, lógicas ferozmente irretorquíveis. Um Sistema precisa ser um todo fechado. Sem frestas, por onde entre a dúvida. (A dúvida é uma brisa fresca. Para um Sistema, é um começo de ferrugem.) Assim se fizeram os grandes aglomerados da Verdade. Platão, logo ele, o discípulo amado de Sócrates, Aristóteles, o homem mais inteligente que pisou na face da Terra (Hegel disse), Alberto Magno, Tomás de Aquino, Descartes, Spinoza, Leibniz, Locke, Berkeley, Hume, Kant, Hegel. Chega. Do século IV a.C. de Platão e Aristóteles ao XVIII/XIX de Kant e Hegel fizeram-se Sistemas. Magníficos. Necessários. Mas a vida, aquela de que é preciso cuidar (foi Sócrates quem disse), foi ficando triste. A vida não cabe nos Sistemas. É feminina. Deseja e se inquieta. Ficou de fora.
Mas a História não é assim linear. Dos séculos III a. C. a II E. C. andaram uns filósofos, chamados “menores”, perguntando-se pela vida e procurando não as altas abstrações dos Sistemas, mas a mais delicada e cariciosa felicidade. Nesse curto tempo, em que os Sistemas estiveram enfraquecidos, a filosofia concentrou-se em cuidar. Epicuro, Zenão, Epiteto, Sêneca, Cícero, Lucrécio, Marco Aurélio, uns assim. Depois, já dentro da cultura cristã, houve um que pensou confessando-se: Santo Agostinho, séculos depois silenciado pelo grande Sistema de Santo Tomás. Entrou o Renascimento e foi possível pensar por ensaios, tentativas parciais. Montaigne ocupou esse lugar. No XVII, tão fértil em grandes Sistemas, um pensador houve que só admitia que se buscasse gemendo: Pascal, torturado e doce. E no XIX houve Kierkegaard, que se espantou com o excesso de Razão, e o grande Nietzsche, que quis acabar com ela e restabelecer os direitos da vida, da potência da vida.
Costumamos reverenciar os dos Sistemas. E apequenar os da Vida. (Nietzsche escapou desse desdém. Usava um martelo para filosofar.) E os Sistemas são mesmo muito importantes. Explicam muito. Mas explicam demais. Precisamos desses “menores”, desses franciscanos do pensamento. A vida anda cai-não cai. Temos de voltar a cuidar de nós. “O caminho, a verdade, a vida” podia ser um grande mandamento filosófico, nesses nossos dias tenebrosos. Diria assim: saiam das fortalezas, venham para a rua, a vida é aqui, brincar é bom. “Procurar gemendo” pode ser uma boa divisa para o momento em que a Verdade foi dispensada, estamos na pós-verdade, e no entanto todo mundo tem certezas inabaláveis. Vamos chamar Pascal. Os outros virão junto. E quem sabe possamos jogar de novo. Pascal diria: aposto que sim. — Apostar pode ser o que nos resta, hoje, para reaprender a viver com alegria.
Foto: Gustavo Stephan (O Globo)