Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Já não sabemos mais?

Antes sabíamos contra o que lutar. Na globalização, os caminhos perdidos se multiplicaram

Publicado no jornal O Globo (28/10/2017)

O poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe escreveu no seu “Fausto”: “O homem erra enquanto luta”. Queria dizer que o que descreve a inquietação humana não é uma estrada reta, de bom asfalto, bem sinalizada, levando direto aonde se queira chegar, o alvo claro de cada um. Não há alvos claros. A Humanidade luta, se agita, se debate — e erra. A sinalização é precária. Os descaminhos são muitos. A errância é o modo mais humano de avançar. Não o erro grosseiro, contrário do acerto luminoso. A errância, mesmo. Errar é vagar, todo o contrário de se estabelecer e criar raízes. Errar, movimento, é a essência do caminho. O caminho não está lá, desde toda eternidade, esperando o pé sábio que o encontre por fim. Nada disso. O grande poeta espanhol António Machado alertou os apressados: “Caminhante, não há caminho/se faz o caminho ao andar”. “O homem erra...” Sempre os poetas sabem. Como os místicos, eles veem mais.

Mas é impressão minha ou anda mais difícil esse humano caminhar? Perdemos a habilidade de errar com acerto? Pés atados? — Vemos ali os navegantes das águas da morte, os migrantes da desesperança — e não encontramos vias de acesso para o seu sofrimento. Seria preciso andar sobre o mar em que naufragam de olhos abertos para um céu que se fechou? Nunca soubemos andar sobre as águas. Um de nós sabia, e fez. O outro afundou por falta de fé. Nós somos herdeiros desse Pedro que temeu. E não vamos lá. — O terrorismo viraliza pelo mundo. Não sabemos como chegar aos seus fundamentos sem nos tornarmos fundamentalistas. Ele é irônico e esquivo. Se formos ao seu campo, perdemos. Se ficarmos por aqui, no lugar dos alvos, perdemos. — A riqueza se concentra obscenamente. (É preciso ler “O minotauro global”, de Yanis Varoufakis, que era ministro das Finanças da Grécia na época daquele acordo mortífero. Ele sabe.) Pois então, a riqueza se concentra. A legião dos pobres cresce. O deserto da desumanização se estende. Não sabemos mais ir ao deserto. Ele está armado em campo de batalha, não passamos nem como Cruz Vermelha. E o pior: nessa guerra ninguém tem razão. Só as vítimas. Às quais não sabemos chegar amorosamente. Delegamos aos Médicos sem Fronteiras. Apoiamos com dinheiro os MSF. Mas depois já não vamos dormir tranquilos. Os olhos esbugalhados de água nos perseguem. Os cadáveres nos terraços dos cafés de Paris, no mercado da Somália, nos aterrorizam com suas mortes. O deserto fervilha de tiros na nossa noite. O mundo ficou hostil por todos os lados. E, ainda mais, está virando à direita e muitos de nós simplesmente perderam o leme e a bússola. Vivem num mundo antigo, sem perceber que os pontos cardeais giraram. Perto de Trump, Merkel é aliada. Recebe os migrantes, que Trump mantém bloqueados no mar na cara da Estátua da Liberdade. Ficou difícil.

Antes sabíamos contra o que lutar, com quem contar. No mundo globalizado, os caminhos perdidos se multiplicaram. Começamos no lixão de Gramacho, catando detritos como sucedâneo de vida, continuamos na Síria, apostasiando nossa fé ou morrendo por ela, acabamos entre o Kremlin e a Casa Branca distribuindo fake news. O homem erra enquanto luta. Recomeçamos. Pomos o pé em Lampeduza, mas a mão se agita no apoio ou rejeição ao Brexit, e a cabeça calcula votos no parlamento da Argentina. Já foi mais fácil. Nossos sonhos eram os de liberdade com igualdade. Havia quem nos assombrasse com um “ou bem... ou bem”. Muitos de nós, ao contrário, não imaginávamos uma sociedade livre mas desigual, igualitária mas sem liberdade. Liberdade mesmo, dessas fundamentais, ir e vir, dizer o que nos venha à cabeça, encontrarmo-nos e organizarmo-nos, votar. Igualdade mesmo: que ninguém seja de segunda ou terceira classe por causa da posição que ocupa na sociedade. Porque a Humanidade é a mesma, e é sinal da presença de Deus. Agora já não encontramos um caminho bom, mesmo que seja uma picada espinhenta com pinguelas despencadas. As liberdades encolhem, a desigualdade cresce, os caminhos se perdem na floresta. Fins de linha. Há contas para mostrar que a desigualdade já foi maior — relativamente. “Relativamente” é uma palavra traiçoeira. A realidade não é relativa. “É real e de viés”, ensinou Caetano. E é na realidade que se morre “de velhice antes dos trinta,/de emboscada antes dos vinte/de fome um pouco por dia”. João Cabral. Ainda um poeta, um que sabia.

Onde estão os fogos que antes nos orientavam? De fogueiras escondidas, de incêndios, fogos-fátuos. Pirilampos nas noites assustadas. Vamos chamar de volta os poetas que o mundo globalizado exilou para o silêncio? Ainda há poetas. Eles ainda falam. Conservaram a visão? Têm seus fogos ainda acesos, brasas no escuro assustado? Vamos apostar que sim. — Procuram-se poetas. Paga-se mal. Trabalho insalubre. É urgente.

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)