O erro de Freud
Religiões são meios de organizar a espiritualidade. Precisamos amá-las e mantê-las leves
Publicado no jornal O Globo (21/10/2017)
Nós, humanos, somos bichos de transcendência. Não é por estarmos insatisfeitos com as nossas vidas, de modo nenhum. As nossas vidas comuns são o que há de mais belo e poderoso. E frágil. Talvez por isso, para ao mesmo tempo preservar a fragilidade e protegê-la de quebrar aos ventos fortes, esperamos mais. Sonhamos. Desejamos. Queremos o futuro mais perto. E olhamos para o céu. E nele vemos o que não está em parte alguma. Vemos Deus. Essa pulsão de subirmos, avançarmos, recuarmos aos limites extremos é a espiritualidade. Todos os povos modularam suas histórias com uma certa experiência de espiritualidade. O trabalho de uma cultura é canalizar essa pulsão.
Aprender a lidar com o desejo de transcendência é toda uma sabedoria. Os modos que inventamos para fazê-lo é que, entre outras qualidades, distinguem civilizações. Chegar a um nível de quietude desse desejo desmesurado exige artes sutis e serenas. Podem ser as da meditação que esvazia o espírito. Ou as da representação dos ancestrais, seu retorno no banal da vida. Ou as da calma de artes destinadas ao equilíbrio e à harmonia. Ou as de uma convivência amorosa com a natureza. Ou as da oração. São todas práticas de serenidade, produzem paz e alegria. O exercício da espiritualidade dos tempos e dos povos é um ensaio de felicidade.
As religiões são meios de organizar a espiritualidade. De impedir que fuja para além do horizonte do nosso desejo. São benfazejas quando o fazem com a delicadeza de quem protege orvalho. Quando se excedem em leis e manuais, podem reduzir essa pulsão de transcendência a um amor à lei. São boas, as leis. Mas só enquanto põem mãos delicadas sobre a vida. Quando a pesam são um tormento. As religiões podem ser o tormento da vida, podem desvesti-la do gosto de a-mais que a faz, a vida, ser maior do que a natureza a dá. Precisamos manter leves as religiões. Amá-las, mas cuidadosamente.
A Humanidade talvez deseje ser uma passagem entre esse “bicho da terra tão pequeno” de que nos falou Camões e o Anjo que Rilke viu na contraluz do dia. Sem deixar de nos alertar: “Todo Anjo é terrível”. Porque o Anjo é o a-mais. Assusta. Mas temos sabido, tropegamente, lidar com ele. Com eles, o bicho pequeno e o Anjo desmesurado. Aos trancos e barrancos, vamos tentando nos equilibrar entre nossas duas realidades, a demasiado humana e a para além. De nós nessa lida Nietzsche disse que o que há de amável no homem é ser uma ponte e uma passagem. Nós somos, desejamos ser, habitantes da ponte. Ida e volta. Entre o bicho e o Anjo. Entre o Anjo e o bicho. Sem nos perdermos de nós, sem abandonarmos o sonho do a-mais. A ponte de Nietzsche é o arco-íris da transcendência.
Nem toda organização da espiritualidade é uma religião, se por religião entendermos a explicitação de uma fé. Da presença de um deus. O budismo não tem deus. Mas organiza uma espiritualidade tipicamente oriental em torno de rituais de sabedoria. Como beber com delicada delícia um chá inexistente de uma finíssima xícara vazia. Do Oriente médio para o Ocidente extremo três religiões se criaram para dar forma a espiritualidades que nasceram por perto da ponta leste do Mediterrâneo. Montaram-se em torno do Livro. Exercem-se na leitura e na interpretação das palavras. Da Palavra. Produzem modos de servir a Deus, o mesmo Deus, Javé, o Pai, Alá. Honram-no pela justiça, pela submissão e pelo amor. São, as três, modos de organizar a transcendência. Amar, obedecer e ser justo são experiências de espiritualidade, do humano desejo de a-mais. E, como as outras talvez, essas apresentam o desafio de um perigo: podem, com alguma facilidade, virar dogma. Pesar como pedra sobre a alma que sonha.
A palavra “dogma” anda mal das pernas. Mas na origem significou “o que há para saber e ensinar”. Dela decorrem doutor, docente, doutrina. São boas coisas. Mas, quando tudo isso vira poder e se impõe de cima, a espiritualidade que uma religião devia servir entra em sofrimento. Mas sobrevive, ferida. Porque a espiritualidade é mais radical do que a religião.
Por isso é que quando alguém condena a religião (Marx fez) está atirando na superfície. Esse foi o erro de Freud: limitar-se à análise da religião no plano do dado humano. Entendê-la como parte das pulsões ordinárias. Com isso passou longe da pulsão extraordinária, e de uma transcendência que, essa sim, constitui o humano até a raiz.
Por isso, também, quando todas as religiões estão sob ataque, e se atacam reciprocamente, a espiritualidade, que sofre com essa traição, não quebra. Porque é nela, no fim das contas, que os olhos se fecham e aparece o que é superior. É nela que, sendo o caso, lateja Deus.
Foto: Gustavo Stephan (O Globo)