Vamos plantar jardins
Teria sido bonito se em lugar das salas, ainda ancorássemos as nossas esperanças no aberto do jardim
Publicado no jornal O Globo (14/10/2017)
Quem tenta um vestibular hoje está à procura de um lugar de criação de conhecimento. E sabe por que o faz. Quer entrar no fluxo da História. Receber a cultura lá de trás e levar uns metros adiante. Como os galos de João Cabral: “Um galo sozinho não tece a manhã:/ ele precisará sempre de outros galos/ ....e de outros galos/ que com muitos outros galos se cruzam/ os fios de sol de seus gritos de galo/ para que a manhã, desde uma teia tênue,/ se vá tecendo, entre todos os galos”. Tecendo a manhã seria uma bonita divisa para as universidades. Quando está escuro, e o inverno avança, acordar os galos e tecer a manhã. Porque isso é certo: a manhã sempre virá. E nós velamos, galos insones. Quem procura uma universidade sabe disso, quer fazer parte da teia dos galos.
Esse bonito sonho começou para nós ocidentais quando, em 387 a. C., Platão criou a Academia. No começo não tinha currículos. A Academia foi dedicada às Musas e a Apolo. Havia pórticos e altares. E jardins. Um bosque sagrado para Atena. Quem entrava sentia a natureza sagrada do conhecimento. Para pensar o Bem e o movimento dos astros. O amor, a morte e o poder. Havia mais velhos e mais moços, ficavam juntos, eram uma comunidade. Pelo menos duas mulheres estudaram ali. E uma tradição foi tecendo a nossa manhã.
Depois os currículos vieram empedrar esse lugar de altares e bosques. Talvez tenham-se criado salas de aula. As nossas universidades, depois das medievais, herdaram as salas. E os currículos. Não os bosques e altares. Mas continuamos acordando o dia, de galo a galo. Teria sido bonito se em lugar das salas, em que uns falam e outros ouvem, ainda ancorássemos as nossas esperanças no aberto do jardim.
Mas não é tarde. Lá nos nossos começos houve também Epicuro. Esse foi o fundador de uma escola dedicada à felicidade. Os homens e mulheres, livres e escravos, as prostitutas que buscavam outro caminho para suas vidas eram todos bem vindos ao Jardim. Era uma reunião de amigos. Não de professores e alunos, sábios e ignorantes. De amigos e amigas, que conversavam sobre os sofrimentos da vida e se apoiavam mutuamente, para que cada um pudesse, pelo seu caminho pessoal, ser feliz. Fez-se teoria ali, claro. Não era um centro de terapia de grupo. Havia mesmo um espírito messiânico na escola: a vida é tão importante, era preciso proliferar Jardins. Entre galos e galos.
Então é isso: temos no nosso remoto passado grego bosques, altares, portais e jardins. E conversas. Sobre a Verdade e o Bem, na Academia. Sobre a vida, o sofrimento e a felicidade, no Jardim. Tornamos a Academia mais pobre, mas a sustentamos valentemente. Depois da sua destruição (o imperador Justiniano considerou a filosofia uma ‘seita estrangeira’ e fechou a Academia de Atenas), os medievais fundaram no século XIII as universidades como as conhecemos até hoje. Havia uma Faculdade de Artes, onde se estudava filosofia, e as de Teologia, Direito e Medicina, que davam os títulos de mestre e doutor. O ensino era organizado em torno de grandes disputas em sala de aula, cujo desenlace frequentemente ia para a praça, tanto era o interesse na questão. A Universidade se abria para quem quisesse vir e ouvir. Insinuava-se nela um misto de Academia (havia altares) e Jardim (vinha quem quisesse para assistir uma conversa grande). Foi bonito. Com o tempo, também se empedrou. Sofreu reformas e chegou a nós. Mas chegou Academia. O Jardim ficou pelo caminho. Herdamos a Academia onde se trata do conhecimento e do serviço à sociedade. Não o Jardim do prazer, do sofrimento e da felicidade. E da amizade, que sustenta os caminhos. Não faz mal. Herdamos. E queremos levar adiante. Nossos alunos vêm nos encontrar, galos de galos. Acreditamos na teia da manhã tecida entre nós. Talvez sejamos todos, nossos alunos e nós, apenas tolos. Aí nos lembramos de Platão, de Epicuro e das universidades medievais e sabemos que não. Tolos são os que não veem.
As nossas universidades hoje crescem na criação tecnológica e científica. (O governo corta as verbas.) Na abertura de oportunidades a uma grande diversidade de jovens de todo o País. (O governo corta as bolsas.) De resistência à escuridão, que avança. (De galo a galo, tecendo a manhã.) Vamos ensinando, aprendendo, vivendo juntos, gerações e gerações. Mas precisamos semear Jardins. Largar de vez em quando os currículos, olhar os peixes no laguinho, as velhas árvores (a Praia Vermelha e a PUC têm, são boas candidatas a Jardins), as sombras boas. Entre a Academia em que vivemos e o Jardim que podemos plantar, quem sabe um dia colhamos frutos de saber e felicidade. Flores muito delicadas de esperança.
Foto: Gustavo Stephan (O Globo)