Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

A lavanderia de Francisco

Os muito céticos dirão provavelmente logo: Mas é o Papa! Assim, até eu. Pois é, por que não você?

Publicado no jornal O Globo (07/10/2017)

Francisco cismou de abrir uma lavanderia. Com máquinas novinhas de lavar e secar, sabão cheiroso, amaciante. Profissional. E gratuita. Ninguém paga. Não admira que os pobres que vivem nas ruas da cidade vão lá a toda hora ficar limpos e cheirosos. De graça! Mas Francisco não é qualquer um, como eu e vocês. Tem mais poder e é mais humilde do que nós. É um homem... como direi?... superiormente bom. Dá para ver pelo seu sorriso, tímido e solar. Francisco mora em Roma. É padre. Gosta de ser chamado pelo seu nome, padre Bergoglio. Francisco é o nome do Papa. A lavanderia de Francisco é a lavanderia do Papa.

Há muitos pobres em Roma. Que dormem ali pelas ruas, alimentam-se como a caridade individual permite, e cheiram mal. Por isso não frequentam certos ambientes em que talvez pudessem estar, mesmo com suas roupas desconexas, encontradas ao acaso das lixeiras ou distribuídas pelas igrejas próximas. Seus sapatos sujos. Mas o cheiro... Há um cheiro irremediável da pobreza de rua, que expulsa os pobres de alguns lugares. As padarias. Os botequins. O metrô.

Então, antes da lavanderia Francisco abriu uns banheiros. Com água, sabão e shampoo. E toalhas. O básico. E os pobres de Roma começaram a tomar um banho bom. Água quente. Banho mesmo. Nus, chuveiro aberto sobre a cabeça. Quase um batismo. Francisco batizou os pobres de Roma com a limpeza que é direito quase animal. Para os muito pobres é um dos direitos humanos. Dos mais básicos. Tem a ver com a qualidade dos corpos na cidade.

Mas as roupas... As roupas já são velhas. Refugos urbanos. Deixados por ali, jogadas fora. Já não primam pelo frescor das camisas tiradas limpinhas dos armários. São usadas e usadas e usadas. Para dormir, para caminhar, para ficar sentado contra as paredes das casas. Roupas de esmola. Francamente, cheiram mal. — Aí Francisco abriu as lavanderias. Eu vi as imagens. Muitos viram. Senhoras que já tiveram uma vida bem arrumadinha e as crises econômicas jogaram na rua. Pessoas abandonadas pelas famílias. Velhos, só isso mesmo — velhos, que com os anos ficaram sem lugar. A quem restam as ruas, que são misericordiosas. Todas essas pessoas faziam a mesma coisa: cheiravam. Com volúpia, com doçura, ternamente cheiravam as roupas limpas, que tinham recebido água quente, sabão, amaciante cheiroso. Tinham sido centrifugadas! É um espetáculo a centrifugação das roupas. A velocidade do giro do tambor as cola nas paredes internas, e elas praticamente somem. Ficam desaparecidas por uns minutos. De repente o tambor desacelera e as roupas vão caindo devagar, como devem cair as folhas no outono. É um espetáculo. E quando as máquinas são abertas está tudo seco e cheiroso. Os pobres de Roma cheiram, sorriem e dizem: “Agora a minha roupa cheira bem. Posso ir a qualquer lugar”. Roupa limpa — tão simples! — dá mobilidade social.

Os muito céticos dirão provavelmente logo: Mas é o Papa! Assim, até eu. Pois é, por que não você? Junte mais três, ou dez, e abra um chuveiro, uma lavanderia no seu bairro. Os pobres da vizinhança vão poder andar orgulhosamente cheirosos pelas ruas para as quais foram expulsos pela vida ruim. Dá para fazer. Não custa tanto. Você tem máquina de lavar e secar em casa. Compre mais uma de cada. Peça aos seus amigos que façam o mesmo. Umas dez, quem sabe, bastem. E não serão mais as lavanderias do papa. Serão um sinal — tão pequeno, afinal! — da bondade organizada. Pode ser feito. Não custa muito.

Andei fazendo umas contas. Há o tal 1% dos absurdamente ricos. Deixemo-los em paz. São pessoas muito ocupadas. E não usam lavanderias. Dos 99% que sobram, há os — quantos? 40% muito pobres? Sobram quase quatro bilhões de pessoas. Dessas, quantas serão daquela classe média que pode comprar máquinas de limpar e dar bom cheiro a roupa empobrecida? Metade? Um terço? Um terço. Mais de um bilhão. Agrupados de dez em dez, cem milhões. Cem milhões de lavanderias de Francisco. A quantos pobres por lavanderia, dez? Um bilhão de pessoas com roupa limpa e cheirosa. É pouco?

Não é uma revolução. Revoluções estão difíceis. Mas é um upgrade de dignidade. Dá um certo orgulho a quem pode andar entre seus semelhantes sem provocar justos enrugamentos de narizes sensíveis. E é um bom modelo. Dez pessoas de bem por padaria. Dez responsáveis por leite. A brigada de dez pelos cobertores. Depois o Estado precisa fazer alguma coisa para generalizar essas pequenas ações. Mas os Estados andam moles para a misericórdia mínima. A bondade organizada, o amor civil, não admite moleza. E nem é difícil.

Que triste, não é? — consolarmo-nos um pouquinho quando os pobres cheiram bem e comem seu pão. Mas depois virá mais. As lavanderias de Francisco são só um sinal. Os sinais podem sacudir o mundo.

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)