‘Minha querida turma” são três por semestre. Têm datas de validade diferentes. Tem quem entre e quem saia. E quem volte. Mas é uma turma só, de toda a vida. O lado de lá do meu amor de ensinar. Eu o teria, alegre assim, se não fossem esses meus alunos e alunas da Escola de Comunicação da UFRJ, a ECO? Que entram lá aterrorizados por terem de estudar filosofia, ouvem dos veteranos umas coisas doces e alegres sobre o velho professor e chegam no primeiro dia curiosos, para conferir? E é sempre festa. Porque são eles, porque sou eu. A minha querida turma é alegre, não é sisuda como as que vi em universidades estrangeiras. Nem arrogante. Está no terço superior de notas para a entrada na UFRJ, mas é simples e sabe rir. A Pós acaba de receber a mais alta avaliação da Capes. Nível internacional. A primeira do país. Todo mundo está prosa, mas ninguém subiu no salto. Continuamos pedestres e caminhantes.
Quando eu era menino, quis ser padre. Não era a minha vocação. Fui encontrar na universidade o ambiente mais próximo possível de um convento laico, aberto sobre o mundo, rumorejante de riso, que é o que podemos fazer para dar testemunho da esperança entre quem vive “sujo de tristeza e feroz desgosto de tudo” (esse é Drummond, os poetas sabem essas coisas da vida ruim). Estão ali pessoas que passam juntas um tempo, estudam, ouvem e conversam com seus colegas mais velhos, seus professores. (Colega significa: quem lê junto. Tenho tanta alegria de ser colega da minha querida turma!)
Há já uns anos tem crescido a diversidade nas nossas salas de aula, nos corredores, no laguinho, nas filas da xerox do Itamar. Enem e Sisu selecionam candidatos do norte ao sul do Brasil. Crianças, quase, que têm um sonho: querem estudar na UFRJ. Querem “fazer Comunicação”. Querem a ECO. São vozes, sotaques, jeitos de corpo, comidas (que às vezes vêm de longe, para nossa delícia), palavras novas que são logo absorvidas. A minha querida turma não discrimina. Tem uma doce multiplicidade de peles, gêneros e escolhas sexuais que não choca ninguém. Na outra turma de filosofia tem um cego. Os professores se consultam, trocam nos corredores experiências de adaptação. Espero que seja feliz por lá. Que esses anos também estejam entre os melhores da sua vida. Lá ele pode ter certeza de que é amado.
Outro dia um aluno me escreveu para justificar sua falta porque desde as cinco da manhã um tiroteio na Maré, bem na altura da Vila do João, o impedia de sair de casa. Disse-lhe que não se mexesse de lá, cuidasse bem de si (no fundo, é tudo que a filosofia tem para ensinar), primeiro viver, depois filosofar. Semana passada uma aluna me procurou explicando que, vinda de outro estado com poucos recursos, precisou ir para o alojamento da universidade. Que pegou fogo. Governo que congela orçamento não libera dinheiro para recuperar a cama e a mesinha de trabalho de quem depende de alojamentos incendiados. E foi parar precariamente em São Gonçalo, com ônibus fornecido pela universidade para vir, não para voltar. Disse-lhe que ficasse em casa, não se preocupasse com as aulas, depois se veria. E meu coração encolheu de impotência e tristeza. Veio de longe, essa menina. E é como se não tivesse conseguido chegar. (Quem ouviu dizer que as universidades públicas são de elite e os alunos deviam pagar dê uma olhada nas estatísticas de composição socioeconômica das federais. Vai ter uma surpresa.)
Nas colações de grau ouvem-se discursos cada vez mais frequentes dos formandos agradecendo às suas famílias que vararam distâncias grandes para assistir a esse momento especial. Na plateia agitam-se bandeiras, são peregrinações amorosas por filhos e netos que estudaram na UFRJ. Chora-se lá e chora-se cá, alunos e professores na mesa. Porque é muito bonito, é mesmo uma beleza de se chorar.
Pois é... Acordei hoje com saudades da minha querida turma. Nos vimos a semana inteira. Mas acordei com saudades. E escrevo essa carta aberta de amor, para que outras pessoas possam imaginar as nossas salas, os corredores, o laguinho e os peixes, e sorrir conosco. Anda difícil ter esperanças. Mas a dificuldade acaba quando entro na ECO, e a minha querida turma vem me acarinhar. Queria que todos soubessem. É possível. Tem sóis que se levantam todos os dias, ainda tem. Eu tenho o privilégio de viver sob a sua luz.