Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

‘Vire uma pedra, Deus aí estará’

Se Deus se mostra pelos estigmas a alguém sem gosto pela transcendência, onde fica o povo da Igreja?

Publicado no jornal O Globo (23/09/2017)

Vi várias vezes o filme “Stigmata”, que me produziu um desconforto fascinado e um problema teológico com as minhas crenças e a minha Igreja (que saiu muito mal na fita). Trata-se de acontecimentos envolvendo um jesuíta-cientista que trabalha para o Vaticano em processos de canonização. A Igreja desconfia, e faz bem, dos milagres. E os investiga com espírito científico. Se possível para os desqualificar.

Dessa vez Andrew Kierman é mandado aos Estados Unidos para investigar uma mulher que recebeu sucessivamente todos os estigmas de Cristo. Todos. Como se fosse São Francisco com sua pesada carga de testemunho do amor. E a mulher era ateia. Não estava dando luz a nenhuma transcendência. O mistério era completo.

Crescentemente esses fenômenos inexplicáveis foram sendo associados à descoberta do Quinto Evangelho, que teria sido escrito pelo próprio Jesus. E conteria afirmações que poriam abaixo o papel histórico e sacramental da Igreja. Revelado esse Evangelho, a Igreja se tornaria dispensável. E pelo mal que fez seria execrada. E o bem que espalhou perderia seu poder de manifestação de Deus.

Um pequeno grupo de religiosos à beira da excomunhão encontrou o manuscrito e se pôs a traduzi-lo secretamente. Um deles morreu no norte do Brasil. E aí é que começa o drama. Ele havia descoberto uma frase, e se recusava a deixá-la inédita. E para fazê-la ser dita e compreendida apossou-se da ateia Frankie Paige. A frase era: “Levante uma pedra e Deus estará lá. Vire um pedaço de madeira, e Deus estará lá.” Por causa dela desapareceram ou foram silenciados os tradutores do antiquíssimo rolo. O problema não era pequeno. Se Deus está ao alcance de qualquer pessoa que levante uma pedra ou vire um pedaço de madeira, a Igreja não terá mais o que representar. Será apenas uma instituição de poder. Não qualquer uma: a mais antiga da história do Ocidente.

O resto do filme é um thriller policial-religioso. Eu o veria de novo. Mas é porque essa frase ficou martelando a minha consciência. Se Deus se mostra pelos estigmas a uma pessoa sem nenhum gosto pela transcendência, onde fica o seu povo organizado em uma Igreja? A própria ideia do “povo de Deus" deixaria de fazer sentido. Eu gosto do filme, que não é nada demais. Mas ele me perturba. Entendo que Deus mostra seu Mistério de qualquer modo, às vezes muito banal. Naquele filme ele, o Mistério, me tocou.

“Levante uma pedra e Deus estará lá.” Você não precisa ir a uma igreja cheirar incenso e aturdir-se com o som do órgão. Levante uma pedra. Fiquei pensativo. Com uma reflexão flutuante, indo e vindo como marés, nada de focado e “objeto de pesquisa". Ainda bem. Porque de outro modo não me teria aparecido, num lusco-fusco da consciência de guarda baixa, uma ideia que, provisoriamente, vai me servindo.

A religião cristã, que organizou uma espiritualidade médio-oriental que depois ganhou o mundo, trouxe uma novidade que deve ter espantado mais do que levantar uma pedra e encontrar Deus. Foi a ideia de que, sendo uma só substância, Deus no entanto se apresenta em três Pessoas, todas o mesmo Deus: o Pai, o Filho, o Espírito Santo. No seu modo Pai, Deus criou o mundo. No modo Filho entrou na história humana e a divinizou. E humanizou sua própria divindade. Morreu como homem, ressuscitou porque Deus não morre, e nos deixou. Ficou o Espírito Santo, o outro modo do mesmo Deus, para nos dar sinais do divino. Que temos lido muito mal.

Levante uma pedra e Deus estará lá. Sim. Em todas as criaturas está o Criador. Não se trata de um panteísmo mais ou menos frouxo. Deus, como Criador, não abandona sua criação. E o Espírito Santo está entre nós. É a sua presença que eleva as nossas expectativas. É o fiador do nosso gosto de transcendência. Mas o Filho veio e foi. Abandonou-nos. E prometeu voltar, num tempo que não medimos pelos calendários. Esse, o Filho, nós aguardamos todos os dias. Para isso organizamos espaços de espera e esperança. Chamamo-los ‘igrejas’, lugares em que comunidades leem juntas e comungam a sua presença. Para que ele nos veja. Fazemos assim porque temos medo de que não nos encontre. E vamos lá, uns mais, outros menos, para ver se, finalmente, hoje houve algum sinal. Esperamos há dois mil anos. Não é tanto tempo assim.

Essa intuição me sorriu. É uma teologia esfarrapada, não a criei com conceitos. Está viva. Difícil agora dizê-la em palavras.

Dou-me conta de que essa coluna terá muito poucos leitores de fato interessados. Trata de umas coisas... Peço desculpas. Essa pedra interferia na minha paz. Encontro aqui, às vezes, um espaço para essas expansões descabeladas. E dedico esse palmo de prosa aos cristãos que em quase todos os continentes estão sendo mortos por sua fé. Com pedras debaixo das quais Deus não está.

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)