Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Espera, confiança, esperança

Essas palavras andam pelo mesmo campo, referidas a um futuro, mas apontam coisas diversas

Publicado no jornal O Globo (16/09/2017)

Quem espera sempre alcança. A esperança é a última que morre. Confiança até o fim. Essas palavras andam pelo mesmo campo, referidas a um futuro, meio ilimitadamente. “Sempre”, “última”, “até o fim”... Andam pelo mesmo campo, plantam sua colheita. Mas as sementes não são as mesmas. O tempo de colher é outro. As ceifadoras são diferentes. Essas palavras — mas não é para isso mesmo que as palavras servem? — dizem coisas diversas. Umas triviais, outras imensas. As coisas que elas nomeiam têm também outros destinos, miúdos ou grandiosos ou nada. E tempos vários, dos muito curtos aos que não têm fim.

Tão bonitas palavras! Tão parecidas! Mas suas florações vão enfeitar lugares diferentes, rir nuns como papoulas vermelhas, em outros, quem sabe, chorar como urze brava. Confiança, esperança, espera. Não queremos perder nenhuma.

Mas as diferenças são grandes. A confiança tem sujeito. É o próprio sujeito em ação. Vai um cidadão, entra num bar, O Piolho, no Porto. Pede uma Bagaceira. É novo na casa. Mas pediu bem, mereceu uma confiança instintiva. O patrão na caixa, os rapazes do salão, os velhos frequentadores lhe concederam confiança. Gesto íntimo, do coração. Na hora de pagar, cadê?, estava curto de euros. Não tem importância. Pague amanhã. O patrão vende fiado, na confiança. O cidadão sai feliz. E não volta mais. A confiança acaba, uns ficam tristes, outros irritados. Porque foram traídos no seu íntimo. Diabo de rapaz!

A espera tem objeto. Algo virá: às 17h02m do próximo 20 de setembro a primavera estourará suas cores. Ou algo não virá: está o moço debaixo do lampião da rua e espera Madalena. Levou-lhe lilases. Vão ao cinema, ele lhe dirá que a ama. Depois vão comer fritas. Passa o último ônibus. Madalena não veio. Os lilases penderam suas cabeças murchas. O cinema fechou. Coisa triste demais, Madalena. Vá outro dia. Ele vai estar lá. — O objeto da espera é Madalena. Não apareceu e a espera, naquele dia, acabou. Por falta de objeto. Com a primavera é diferente. Ela foi minuciosamente calculada. Um escândalo será se não vier. Pois a essa hora exata o sol estará incidindo sobre o equador, e os dias e as noites serão iguais. Bonito, isso, da equivalência de luz e sombra. A espera termina às 17h02m. Cálculos astronômicos garantem. E é preciso ter confiança nos astrônomos.

A esperança também tem sujeito, a alma, exposta e nua. Objeto? Tem, mas recolhido no segredo, não todo visível como uma coisa entre coisas. E tem dimensão. Não tinha dito? A espera e a confiança são unidimensionais. De resultados tristes ou alegres, são só aquilo mesmo. A esperança tem uma dimensão especial. Ela é transcendente. Sustenta-se mesmo quando nada acontece. Por isso, a esperança não tem objeto direto. Ela não “espera e sempre alcança” pela virtude de ter esperado. Para a esperança, esperar não é virtude, é demissão. A esperança age. Ou nada virá. Ela é a carne do futuro. E o futuro não chega só porque o calendário disse. Quem chega assim é o ano que vem. O futuro precisa ser buscado. Ou não comparece. E a esperança se mantém sempre acesa. Não foi desta vez, está certo, mas um dia, se trabalharmos bem, virá. De certo modo, o moço debaixo do lampião de rua, que espera Madalena, tem esperança. Espera olhando o relógio, mas tem esperança de que amanhã... quem sabe amanhã...? Querem saber por quê? Porque o moço ama Madalena. E o amor pode resgatar uma simples espera para uma delicada esperança. Tem transcendência. Sim, moço do lampião. Ela virá.

Foram-nos dados de presente no primeiro século (São Paulo os entregou, mas vinham muito de cima) três valores pelos quais viver. A fé, a esperança e o amor. Maior, no entanto, disse São Paulo, é o amor. Era seu tempo. A fé e a esperança estavam dadas na comunidade cristã primitiva. O amor precisava ser construído. Hoje... Sonhos revirados, decepções em avalanche, furacões de mágoa dois mil anos depois... Hoje a fé, que encanta a vida, poderia faltar. É da ordem da confiança. Os muito tristes não confiam mais, e perdem a fé. O amor é a carne do presente. Mantém os vínculos, sustenta as amizades, enlaça os corpos. Mas o tempo está para ódios, o amor se fez raro. Um mundo sem amor é horrivelmente imaginável.

A esperança é a carne do futuro. Não tem objeto definido. Algo virá, algo, não sabemos o quê. As esperanças estão baixas, sem o oxigênio do amor as chamas são tão pequenas... Mas algo virá. Quando todo o ar faltar, e a última esperança já estiver sendo chorada, Deus virá ao nosso encontro. O objeto indefinido da esperança é ele. Diferentemente de Madalena, e por motivos não calculados, como o equinócio, virá. Pelo amor do moço debaixo do lampião. E pela explosão de pura beleza da primavera. Virá.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)