Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Poesia, louvação da vida

Os poetas são estranhos e esquivos, ninguém os escolhe na hora de montar um time de futebol de rua

Publicado no jornal O Globo (09/09/2017)

Meu amigo Geraldinho Carneiro escreveu um belo artigo na Revista aqui do GLOBO, sobre o aprendizado da louvação. Descobriu, com a experiência alegre e frustrada de um bar que teve, coisas boas e coisas ruins. E que é isso mesmo que faz a matéria da louvação da vida. “Que lições extraí do Experimento Barcarola? Não sei. Talvez todo tempo tenha o seu horror e a sua graça”... “Mesmo nas piores circunstâncias, precisamos comemorar a vida.” Geraldinho Carneiro é poeta.

Os poetas são inúteis, é o que se diz habitualmente. Já ouvi, como conselho, que a poesia não dá camisa a ninguém. Escrevi cinco livros e não ganhei camisa, é verdade. Mas alguns versos ali prestaram, houve pessoas que se emocionaram com eles. E, aqui e ali, louvei a vida. Procurei Deus e o encontrei. Celebrei o encontro. Coisa para festejar, mesmo, pela vida toda. Eu tinha me perdido dele muito cedo. E o achei, sem pompa, já depois dos 50. A poesia ajudou. Disse-lhe muitos desaforos em versos zangados. E muitas ternuras. Um dia ele voltou. E nunca mais escrevi um verso. Quase 15 anos. Nem um verso... Essa é a parte ruim. Mas foi nesses livros que aprendi a louvar a vida. Deus me fazia falta. Mas a vida era para se celebrar. O artigo de Geraldinho Carneiro me lembrou disso. Quem sabe ainda tenho umas coisinhas para escrever de nome poesia. Se for, dedico o livro a ele.

Desculpe, quem não gosta dessas coisas, o tom confessional. Mas a poesia é assim. Em primeira pessoa. É um dos umbigos do mundo. Acabamos sempre, olhado o poema bem de perto, escrevendo sobre nós. Como quem convida. Venha quem quiser, leia aqui as coisas que encontrei e a forma em que as disse, depois se afaste devagar, meio oscilante, como quem viu anjos na contraluz do sol e ficou sem pernas. Como o bêbado de Dante Milano: “O bêbado que caminha/que rei bêbado será?” Um, quem sabe, que acabou de ser sagrado pelos versos de Cruz e Sousa: “Vai, peregrino do caminho santo,/ faz da tua alma a lâmpada do cego.” E foi depois, rei oscilante nos seus passos, procurando a cegueira do mundo. O rei bêbado. Talvez, como Drummond autovaticinou: “...ser gauche na vida”.

Os poetas são muitas vezes assim: estranhos e esquivos. Ninguém os escolhe na hora de montar um time de futebol de rua. Têm olhos meio enviesados, perdem a trajetória e o momento da bola. Vão no máximo para o gol, os últimos escolhidos. Não tem importância. Saem com poemas sobre o futebol, como os de Chico Buarque. O time não gosta, quer lhes atirar pedras. Mas os poetas tomam mesmo pedrada habitualmente, não se incomodam muito. Eles estão tantas vezes desarmados no meio da tarde, inventando girassóis, e sabem que o Anjo com sua espada imortal, feita do aço duro da eternidade, pode cortá-los ao meio ou deixá-los passar. Nunca sabem antes. Por isso lutam. Brigam com as palavras, que são sua bênção. Deus fez o mundo em palavra. Mas elas são esquivas, delicadamente traiçoeiras. “Lutar com palavras/é a luta mais vã./No entanto lutamos/ mal rompe a manhã”, escreveu Drummond, que foi o mestre maior desse tourear.

A poesia não tem a universalidade abissal da música, que não precisa de tradução, atinge no peito as pessoas mais distantes no planeta e na fala. A poesia precisa de uma língua. E é muito difícil de traduzir. Os tradutores de poesia são heróis e santos. Entregadores de tesouros. Traduzir Shakespeare é escrever junto com ele. Que privilégio! Alguém mergulha fundo num tempo que não é o seu, luta com palavras que não são as suas, compara-as com as habituais da sua língua, encanta-as e volta, molhado da água do mergulho e do suor do trabalho. Exausto e feliz. E nos dá coisas tão preciosas, construídas de palavras que foram geradas duas vezes. Chegam ásperas ou polidas, mas chegam às nossas línguas. São novas. Velhas em outras falas, agora escorrendo orvalho novinho na língua que usamos para cantar e falar, xingar e fazer a paz.

“Maísa me comove me sacode me buleversa”. É Manuel Bandeira encantado com a voz de Maysa Matarazzo. A poesia buleversa, que é o jeito francês de dizer que perturba até a raiz. Serve para celebrar a vida que começa: “Hoje nos nasceu um menino”, está nos Evangelhos. Serve também para preparar-se serenamente para a morte. Odylo Costa, filho, preparou-se assim: “Sinto nas sombras o invisível rio/descer tão lento agora que a canoa/para no susto antigo que a povoa./ Nem alegria ou dor, calor ou frio./ No mundo ponho uns olhos bons de avô:/ foi a boca da noite que chegou.” E morreu sereno. Nós é que não nos preparamos. E continuamos espantados.

A poesia serve também para isso: lembrar infindavelmente. É a memória do mundo e das vidas pequenas. Louva a vida. Não deixa a vida se afogar na tristeza da desesperança.

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)