O esperançômetro anda muito fraquinho. A utopia circulante está abaixo da linha d’água. E abaixo da linha d’água o horizonte não aparece. A “modernidade líquida” faz água por todas as costuras. Os barcos que ainda se arriscam ao mar dos sonhos têm velas rasgadas, âncoras cobertas de corais, moluscos e conchas. Barcos à deriva. E os “realistas” não perdem a oportunidade de dizer: “Nós bem que alertamos. Sonhos são para de noite. No dia claro enlouquecem. E utopia, francamente, é impossível!” Os “realistas” supõem ter o monopólio do que é e do que não é possível. Com esse conhecimento, deviam acertar todas. Não acertam. Tem alguma coisa errada com o realismo dos realistas. Falta sangue. Os “realistas” são secos como contadores de dinheiro. O realismo sem sonho é triste.
Pequena defesa da utopia. A palavra foi inventada pelo filósofo renascentista Thomas Morus no século XVI. Literalmente significa “não lugar”. Para Morus, acenava para uma sociedade perfeita, pacífica e fraterna. Ora, dirão os “realistas”, a perfeição não existe. Ponto para eles. Porém, retrucaria um “utopista”, quem anda sem olhar para o horizonte ou se perde ou não vai a lugar nenhum. Ponto para o utopista. Qual nada, dirá o realista; o que dá direção é a bússola, instrumento magnético do realismo. Ponto para o realista. Só se, responderá o utopista, for verdade que o norte magnético que a agulha aponta, não é apenas um fenômeno natural, sem maior significado para a existência humana. Por que a direção melhor é o norte, e não o leste ou o sul? Ponto para o utopista que o realista imediatamente contestará com o valor das medidas, régua e compasso. Gilberto Gil sabe. Sim, mas quem os deu foi a Bahia. A Bahia de Gil e Jorge Amado, como as Minas de Drummond, o Sertão das veredas de Guimarães Rosa, não estão no mapa. Estão na vida. A bússola não os aponta. Afundam-se no mistério e no coração da vida. Os poetas sabem. Mas os poetas não são “realistas”.
O passo “realista” é o que olha cauteloso para o pé e o chão. Não tropeça nas pedras, mas não vê as estrelas. Não há “realistas” siderados. Se olham estrelas, é para traçarem mapas. “Aquela estrela” pode mesmo não existir mais, dizem. No entanto, olhamos para elas, elas nos encantam. Namoramos sob sua luz ancestral. “Ora, direis, ouvir estrelas!”, escreveu Bilac. “Certo perdeste o senso”. O poeta sabia, porque assim lhe diziam os “realistas”: quem conversa com as estrelas e busca alturas iluminadas — só doido. Os poetas são doidos. Todos os artistas. Os cosmólogos que sonham com uma origem do universo que nunca verão. Os enamorados da paz, São Francisco, Ghandi, Martin Luther King. Doidos, todos doidos. Jesus Cristo, meu Deus!, que louco! Uma terra mansa, onde o lobo se deitará com o cordeiro, como assim?? O lobo e o cordeiro são “naturalmente” incompatíveis. O que Jesus propõe então é “sobrenatural”. Que coisa mais sem sentido... — O que Jesus Cristo propõe é o Reino de Deus. Não há utopia mais radical do que o Reino de Deus. Um bilhão de pessoas vive na esperança dele, hoje, quando os “realistas” tomaram o poder e as naus do sonho estouram contra os arrecifes.
Qual é a loucura de Jesus, que varou vinte séculos? Acreditar que a Humanidade precisa de mais do que pão. E se nem pão tem, precisa dele, e o pão é a primeira utopia. Mas “não só de pão vive o homem, mas de toda Palavra que sai da boca de Deus”. Palavras da boca de Deus! Terceira utopia. Porque a segunda é, naturalmente, Deus mesmo. E que palavras Deus diz? “Caminho, verdade, vida”. Não criem raízes, não morram imóveis. Procurem o Caminho! Porque ele não está visível, mas pode ser encontrado (Quarta utopia). Não mintam, não ocultem, não enganem: a verdade os libertará. (Quinta utopia) Não temam a morte. O limite da vida não é o tempo. É a eternidade. A eternidade sempre recomeçada da vida. (Sexta utopia) E, arremate da loucura: “Amem-se uns aos outros como eu os amei.” O amor impossível! O amor de Deus! — Sim, claro. Por um amor menor, sem transcendência, teria sido necessário pregar o filho de Deus na cruz? — O filho de Deus?? Será o Benedito??
Será. Há dois mil anos tem sido. Levas de crentes têm perseguido esse ideal. Podiam ter parado lá atrás. Realistas e tristes. Mas vieram vindo, e construíram, junto com outros sonhados doidos não cristãos, uma Humanidade capaz de encanto. Cheia de convulsões e escorrendo sangue, é verdade. Mas que não existiria, nessa unidade intensa, sem a louca utopia do Reino de Deus. E existir é mais perfeito do que não existir. Essa é a pequena perfeição que temos: perseverar na existência. Não desistir. Seguir o horizonte que se afasta. É porque ele se afasta que o caminho se faz, que os pés não param. Ao horizonte que foge podíamos chamar esperança. É uma boa palavra. Não é sisuda. Nos deixa sorrir.