Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

O trabalho de si, o amor ao mundo

Perdemos a arte de conversar. De nos correspondermos, descobrindo-nos uns aos outros. Perdemos a capacidade de sermos felizes

Publicado no jornal O Globo (22/07/2017)

Já escrevi nesse cantinho de página sobre o “trabalho de si sobre si”. É uma velha lição dos antigos filósofos estoicos, epicuristas e cínicos, uma receita de felicidade pessoal. Pode ainda servir hoje. Deve. Desde que saibamos que “felicidade individual”, para quem tenha entranhas sensíveis (inclusive o coração, cuja nobreza não o faz escapar do seu destino de entranha), pode ser sinônimo de fechado, encaramujado, egoísta, e não deve ser isso. É verdade que quem não consiga entrar em boas relações de amizade consigo mesmo pouco poderá fazer frente ao sofrimento e à humilhação da vida daqueles para quem felicidade é só um substantivo abstrato. Mas não foi o individualismo que os antigos ensinaram. Embora seja uma tentação para quem já estragou o estômago com o mundo em que vamos vivendo.

O conceito, que é bonito desde o seu nome antigo — trabalho de si sobre si —, tem uma bela história. Foucault, que o desencavou no século XX, afirma que essa pode ter sido a verdadeira atividade que o nosso mítico fundador, Sócrates, prescreveu para os filósofos. O que nos ficou dele foi o “conhece-te a ti mesmo”. Mas isso é Platão ouvindo seu mestre. Com um imperativo desses, talvez não tivessem mandado Sócrates tomar veneno. Parece mesmo é que ele andava pela Ágora importunando as pessoas com uma pergunta invasiva: “Você tem cuidado de si?” O que ele queria dizer era: quem não cuida de si como poderá entrar na política e cuidar da cidade? Cuidar de si era um propedêutico para a política. E implicava um rigoroso trabalho. Não vinha de graça, superficialmente. Trabalhar sobre si pode cansar. Ser tirano ou demagogo é tão mais fácil! Talvez essa tenha sido a pergunta politicamente perigosa que levou Sócrates à cicuta. E a ocultação dela pode ter estado na raiz da filosofia como a conhecemos.

Foi assim. Do “conhece-te a ti mesmo” decorre a relação de um cidadão, mais tarde chamado “sujeito”, consigo mesmo na qualidade de objeto de conhecimento. O que ele precisa conhecer é “si mesmo”. Estão enrolados aí, pertencendo-se reciprocamente, sujeito, objeto e verdade no ato de conhecer. A filosofia veio a andar, assim, pela estrada real do conhecimento. Já do “cuida de si” decorreu outra relação, que Foucault (não se esperava a palavra na sua boca) chamou de “espiritualidade”. Acontece assim: o sujeito, a pessoa, não tem nenhum direito originário à verdade. Precisa ralar. Há técnicas para isso. O exame de consciência diário. Esse mesmo, que o cristianismo depois adotou. A abstenção das coisas e ações que afastam o sujeito do cuidado que ele deve ter consigo mesmo. A transcendência, o elevar-se acima de si. E de repente, vinda não se sabe de onde, a verdade, a que o sujeito não tem um direito natural, vem ao seu encontro! Pula no seu caminho! Dá-lhe a mão. Essa é a felicidade. A filosofia não é uma condutora à verdade abstrata dos platônicos, mas à mais simples e pedestre felicidade. Uma enorme diferença.

A primeira vertente venceu. A filosofia andou pelo conhecimento e pela abstração, pela lógica, encostou na ciência e na tecnologia. O resto, nós já sabemos. A espiritualidade dos estoicos, epicuristas, cínicos acabou parcialmente incorporada ao cristianismo. Como escolas filosóficas, foram consideradas “menores”. Mas hoje estamos desesperadamente precisados da sua ressurreição. Hoje é a felicidade que está em jogo. A individual e a coletiva. A do mundo. E se reencontrarmos esse caminho entupido pelas avalanches do tempo, quem sabe possamos amarrar nele a verdade soterrada por tanto sofrimento, arrancá-la das garras da mera utilidade (coisa pobrezinha) e religá-la ao trabalho de nos reencontrarmos, de sermos (Deus estando atento) pessoas felizes. Sabe-se lá...?

A filosofia como busca do conhecimento abriu escolas para ensinar, universidades, laboratórios. E esses, como me enchem de alegria! Mas a filosofia, como busca espiritual, abriu um Jardim. Todas as tardes os procuradores de felicidade iam para lá, homens e mulheres, conversar. Nada de currículo e ensino formal. Conversa serena. Talvez conseguissem bater papo sobre a Lava-Jato sem saírem na mão. Eram pessoas mais simples. Escreviam cartas umas para as outras. E diários. Nada de cursos magistrais e tratados.

Perdemos a arte de conversar. De nos correspondermos, descobrindo-nos uns aos outros. Perdemos, caramba, a capacidade de sermos felizes. Se a reencontrarmos, pode ser que aprendamos a dosar alegria e indignação. (Não vamos escapar da indignação diante de um mundo que se afoga no mar. Mas talvez não precisemos arrancar os cabelos.) Quem sabe reencontremos o caminho dos jardins. Francis e Chico (os músicos sempre sabem) já nos adiantaram o passo: “E se meu país for um jardim?”. Pois é. E se...?

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)