Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

O desprezo dos intelectuais

Penso nos que têm ódio: sem os mitos do fogo os apressados ainda comeriam cru

Publicado no jornal O Globo (15/07/2017)

Nesse pedaço de frase os intelectuais são objeto, não sujeito. São eles os desprezados. Duvidam? Vejam a pequena repercussão que iniciativas de brilhantes intelectuais nossos têm junto à sociedade. Análises inteligentes, destrinchamentos de problemas complexos em unidades capazes de serem bem entendidas por quem queira realmente compreender. Textos severos, textos apaixonados. Nada. Lemo-nos uns aos outros — e mesmo assim...

Os amigos nos leem, mas já nos conheciam. E pouco mais. Escapam desse silêncio os músicos. Em muitos lugares eles não seriam considerados intelectuais. São artistas, e cada um no seu galho. Aqui os compositores pensam. Têm o Brasil nas suas letras. O povo pobre do Brasil. São ouvidos. Mas acabam consumidos como o mercado determina que sejam: trituradamente. E os outros intelectuais, os de papel, vão embrulhar peixe. Onde estão os grandes livros de interpretação da nossa realidade? Eles existem. Quem os publica? Silêncio. Essas coisas vendem mal. E vender lá é critério quando se trata dessas coisas? É, sim. Desgraçado critério, mas é.

Houve o grande silêncio dos intelectuais na França, na década de 1970, quando o Partido Socialista chegou ao poder. Ou ao governo, o que não é a mesma coisa. Os intelectuais não sabiam o que dizer. Tanto tempo batendo nas estruturas produtoras de injustiça e humilhação... Houve um silêncio, um tempo de perplexidade. Foi chamado assim mesmo: o silêncio dos intelectuais. Os de direita (há isso na França, são excelentes analistas) ainda não sabiam em quem bater. E como são (eram, parece que também andam escassos hoje) gente séria, não foram para a batalha das palavras de ordem. Não é assim que se pensa.

Aqui não houve esse silêncio. Não houve trégua quando Lula foi eleito. Seis meses depois tinha intelectual abandonando o navio, batendo a porta. Tinham um modelo de governo na cabeça. Não deu. Num país como o Brasil, e em geral hoje, num mundo megaglobalizado, a esquerda não chega ao poder. Chega, assim mais ou menos, ao governo. E lá tem de se arranjar com os meios de bordo. A fuga dos intelectuais foi antes do reviramento público das tripas do governo. Foi só isso mesmo: intelectuais caindo fora. E falando, falando. Aqui não houve silêncio. A esquerda se opôs à esquerda sem cerimônia. Temos esse gosto antropofágico por essas bandas: a esquerda é sempre a maior inimiga da esquerda. Vai daí...

Mas tudo isso ainda não é desprezo. Tem suas justificativas. Cada formação sabe mais do que as outras o que é melhor para o povo. O povo não é consultado, mas isso não abala as certezas. E assim vai. Há muita tolice nessas divisões, uma espécie de iluminismo de luz apagada. Mas há, no fundo, boa fé. Triste boa fé. O desprezo começa quando a função social dos intelectuais é dispensada. É assim: não entendo o que essa gente quer, não entendo o que estão dizendo. Não entendo o português em que escrevem. Não é o meu. Para mim, é chinês. —Esses mesmos críticos provavelmente estudarão mandarim se a evolução da presença chinesa no mundo o exigir. Mas aí será uma coisa útil. Eficaz. Com pé e cabeça. De mercado. Nada contra o mercado, que é parte do bolo do mundo. Quer ser a parte maior e ter os melhores ingredientes. Gula do mercado. Mas é parte. Agora, intelectuais de mercado... Sinceramente... E no entanto há muitos romances escritos para rapidamente virarem filmes. Best-sellers, blockbusters. Nada contra, também, se as histórias forem bem contadas, se os filmes forem bem feitos. Não padeço de hollywoodfobia. Vejo os outros filmes também. Leio os outros livros. Tudo tiragens pequeninas, quase de colecionador. Mas existem. Como a flor do Drummond, rompem o asfalto, o asco e o medo. Florescem no escuro.

Mas eu penso mesmo é nos cultores do desprezo, nos que têm pelos intelectuais um ódio mais ou menos bem comportado. Pergunto-me se eles têm a mais pálida desconfiança de que sem Homero e Abraão, sem os cantadores das origens, sem os contadores de histórias e os enfeitiçadores de palavras, sem os filósofos, astrônomos, cientistas que arriscaram suas vidas por hipóteses inúteis, que depois puseram o mundo rodando macio, sem os inventores de mitos — sem esses todos, intelectuais de cada tempo, os orgulhosos donos do mundo estariam muito além da fase de coletores-caçadores. Sem os mitos do fogo os apressados ainda comeriam cru.

É verdade que continuamos caçando os outros, coletamos na terra dos outros, fazemos guerras carniceiras. Mas temos memórias, que os intelectuais puseram no nosso passado. Temos passado, história. Podemos avaliar que andamos melhorando pelo tempo afora. E, se estamos engasgados com o presente, o passado cheio de som e fúria nos estimula a fazer futuros.

Francamente, se isso não é útil, deixemos para lá. E vamos para a praia pegar uma cor.

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)