Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Ética da vida comum

Para quem não sabe, valores são convicções segundo as quais há gente que encaminha suas vidas

Publicado no jornal O Globo (08/07/2017)

Há milênios temos falado de Ética. Assim, com maiúscula. Acabamos tendo com ela a relação que se tem com uma disciplina do pensamento, um conjunto de verdades e prescrições. Como dizemos: a Biologia. Ou: a Filosofia. São nomes próprios. Quem quiser conhecer precisa ir estudar. A mesma coisa para “Vida”. Essa pode ser um conceito filosófico, que cobre com seu guarda-chuva todas as coisas vivas — das amebas ao Filho de Deus. Ou pode ser objeto de estudo científico. Quando se descobriu o DNA, desvendou-se o código da Vida, assim, de novo, com maiúscula. Também é um conceito universal. E aí fica difícil juntar esses dois genéricos: Ética e Vida. Aristóteles, que inventou a Ética como disciplina e estudou as coisas vivas, passaria o lápis vermelho numa prova que propusesse essa reunião. E se houve alguém que sabia das coisas, esse era Aristóteles. O problema está em tratar ética e vida em termos universais. Porque os homens e mulheres não são universais — são comuns. A ética é coisa das nossas vidas comuns. E é aí que pode ser um problema vital.

Hoje somos empurrados para o consumo. Não é mau consumir, quando se trata de pão, agasalho e livro. Vá lá: perfume, roupa bonita, automóvel. Vivemos num sistema em que as coisas são produzidas para serem usadas, e que mal haveria nisso? Há um, e esse é coisa nossa, não foi enfrentado pelos nossos antepassados: é quando a vida, a nossa, não o conceito, passa a ser objeto de consumo. Quando somos estimulados a ir ao mercado comprar subjetividades, valores, pedaços de corpos. E comprar os outros, meu Deus, comprar os outros! Não pensem que isso é conversa abstrata, caturrice (há tempo que espero para usar essa antiga palavra...) de velho inadaptado. Velho nada, inadaptado nada. Tenho meus jovens alunos que me ensinam coisas. De modo que sei que o pessoal está indo aos brechós pós-modernos comprar tempos — retrôs, pós-irônicos (essas coisas existem!) — de modo a inventarem sua própria idade, e fugir dos calendários caretas. Que quem quiser olhos verdes só precisa ir ao lugar certo e comprar. Que um corpo nu, de pele natural, quer dizer, antiga, pode ser a tela de um outro corpo, todo pintado, gravado, riscado a cor e sangue. E que há beleza nisso.

Mas aí há os valores. Há pessoas que vivem segundo valores. Valores, para quem não sabe, são ideias, sentimentos, convicções segundo as quais há gente que encaminha suas vidas. Essas, comuns. As de todo dia. Sair de casa, cumprimentar os vizinhos, apreciar o sol quando ele não está quente demais, e virou para um amarelo dourado, não violento — ou, ao contrário, derreter com delícia debaixo de um que racha paralelepípedos. Ir à padaria, à farmácia, à praia. Meter o pé no mar. Tudo tão sem relevância... Meter o pé no mar...! Mas são exemplos de liberdade, e essa é a essência dos valores, quando o que está em jogo são as nossas vidas comuns. É possível não cumprimentar os vizinhos. Eles podem ser pessoas horríveis. Pode-se nem passar perto da praia. Nem gostar de sol. Dançar na chuva como Gene Kelly. Pode-se. É o que faz a graça de sermos quem somos. O problema é que, por esses tempos, se não estivermos em condições de ser um tipo de pessoa só — o que “faz compras”, “bate perna” em shopping (inclusive para não comprar, mas deixar-se impregnar pelas novidades) — acabamos desinteressantes para os nossos companheiros de mercado. Talvez o grande divisor de águas seja justamente esse: valores levam as nossas vidas para a conquista do novo, de vidas novas, de novos mundos; o consumo como único valor, o consumismo, procura novidades. Entre o novo e a novidade há um mundo para se decidir. E aí mora uma ética, aí se vivem as vidas. Por exemplo: quem se empenha em valores acredita que vidas e mundos são possíveis. Acredita em possíveis. Quem se encanta com a exclusividade do consumo não precisa de possíveis, está tudo aí.

Isso faz uma tremenda diferença para a vida. No plano global do mundo está tudo aí. É como é. Chupem os dedos. Ou larguem de mão. Nada a fazer. (Dizem.) Aqui da planície à beira-mar das nossas vidas comuns, custa a crer. Porque aqui nós escolhemos. Até, se quisermos, nem escolhemos. Os tronos e potestades podem à vontade nos impor coisas grandiosas, realidades definitivas. Nós, aqui, pequenos, rimos deles. Podemos rir. Pode ser que por um tempo grande ainda os poderes teimem em nos dizer o que é a vida. Mas eles simplesmente não sabem. Nós sabemos. Porque vivemos o que é comum. Banal, deliciosamente simples. Há nessa insistência em viver com o olho no horizonte uma pequena ética. Uma ética das vidas comuns. E essa, por poderosos que sejam, eles não podem nos tirar. Simplesmente não podem. São patéticos. Chegam a dar pena.

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)