E começou por aí: precisamente, não é rei. A Igreja devia ser incompatível com o espírito dos reis. Não tem sido. Mas Francisco não é rei. Não mora no Palácio Apostólico. Mora na Casa de Santa Marta. Essa casa recebe clérigos de passagem por Roma, e apresenta, comparada aos suntuosos aposentos do Palácio, uma comovente simplicidade de instalações. Todas as manhãs o papa toma seu café no meio de pessoas, conversa, ouve as novidades e fala livremente. Pode parecer pouca coisa — o papa gosta de companhia e abomina o luxo. Usa sapatos velhos, recusou os calçados vermelhos de grife, carrega sua pasta usada, não usa cruz peitoral de ouro. Tudo contra o protocolo. Podia ser só isso. Acontece que o Protocolo é o poder. Os papas são escravos do Protocolo. Não Francisco. Não o bispo de Roma.
Esse é o título que usa, e também anuncia uma reforma. Na Igreja primitiva havia cinco Patriarcados com a mesma importância espiritual: Roma, Antioquia, Constantinopla, Alexandria e Jerusalém. A Roma se concedia uma preeminência simbólica, em homenagem a Pedro. Até a chamada “doação de Constantino”. Reconhecido logo como falso, esse documento atribuía à Igreja de Roma propriedade territorial, isto é: poder temporal. O bispo de Roma tornou-se de repente um rei, chefe de Estado, e os cardeais, príncipes de um reino de terra e casario. E com esse poder político Roma se impôs aos demais Patriarcados. Isso pelo século IV. E de contrabando embrulhou-se na preeminência temporal também a espiritual. E tornou-se “a” Igreja. Porque o papa, afinal, era um rei. Foi uma grande fraude. Mas produziu duradouros efeitos. Francisco debate-se com o “princípio de Constantino”. Os lobos o defendem. E babam violência contra o bispo de Roma.
Em um livro de 2007 o jornalista francês Olivier LeGendre propõe para a Igreja dois princípios-guia: o de Constantino, segundo o qual ela é uma potência, e então estará em franco declínio pelo mundo; e o de Poo, que a levaria fisicamente para perto dos pobres e humilhados, dos doentes do corpo e da alma, sejam ou não cristãos, espalhados pela Terra. Poo é um fictício extremo-oriental que está morrendo de Aids. Sozinho. Na sua cultura essa doença é uma desonra. Vai morrer na solidão. Condenado. Mas na sua cabeceira, em silêncio, senta-se um cardeal que está lá apenas para isso: honrar essa morte solitária. Ser companheiro dela. E dele, o que morre sozinho. Poo. Escolher o princípio de Poo é dirigir a Igreja para onde ela deveria estar. E está, de fato está, pelo mundo afora, no trabalho dos pequenos padres, dos curas da aldeia, dos bispos amorosos, que há, e que tomam a mão dos que sofrem, e testemunham e honram o sofrimento. E o redimem. Mas, em geral, não na Cúria.
Francisco tem seus lobos na Cúria, nos donos do princípio de Constantino. E deseja viver segundo o princípio de Poo. Por isso tudo o que faz é simbólico dessa escolha. Seus sapatos velhinhos não são de rei. Sua pasta usada, que ele mesmo carrega, não é uma pasta de Estado. A casa em que vive é aberta e pedestre, não tem pompas. Tomam-se ali refeições comunitárias. Há uma história que se conta, e será real ou simbólica, de uma senhora argentina que teria ligado para o gabinete papal para falar com o pontífice. Passaram-se dias. De repente o telefone tocou na sua casa. Na outra ponta estava (assim se identificou) o padre Bergoglio, pedindo desculpas pela demora em responder. Padre Bergoglio, assim gosta de ser chamado o papa Francisco. O bispo de Roma. Em cuja porta rondam os lobos.
Não é impossível que a Igreja como a conhecemos venha a acabar. O princípio de Constantino está chegando ao fim da sua eficácia. Mas resta o princípio de Poo. A Igreja estará onde um padre se sentar à cabeceira de alguém abandonado, para rezar em silêncio e honrar sua morte. Os lobos são príncipes, não entendem o princípio de Poo. Francisco entende. Por isso os lobos rondam.
Os católicos do mundo inteiro deviam se converter ao princípio de Poo. E salvar Francisco dos lobos. Para que ele possa atender ao pedido triste de Deus: reconstrói a minha Igreja. Ainda é tempo. Não depende apenas de nós. Mas depende de nós.