“Que el mundo fue y será uma porqueira, ya lo sé”. Esse tango de Discépolo que Caetano renovou é um tanto apocalíptico. Nada se salva. E não é bem assim. Algumas coisas saíram do estrume e brilharam. Mas, se usarmos a classificação de Umberto Eco dividindo as pessoas entre apocalípticas e integradas, francamente não há motivos para estar integrado e satisfeito com a vida. As estrelas têm preço. E ele é pago por quem não é iluminado pela sua luz. Estrela estranha ao fedor do esterco. E, diz o tango, é o mundo que está assim. Não aqui mais, ali menos. O mundo. Coisa pesada. Vale a pena dar uma olhada de perto.
O mundo vive em regime capitalista. Exceções para Cuba e Coreia do Norte. Pouca exceção para um planeta inteiro. Pois o capitalismo se globalizou. Desenvolveu mecanismos finíssimos de circulação de valor virtual. Chama-se capitalismo financeiro. É astuto. Simula valor, e o mundo se move como se de fato houvesse valor. Valor novo. Essa circulação velocíssima se faz pelo sistema financeiro globalmente integrado, pelas bolsas sempre abertas em algum lugar dominante do mundo, pelas seguradoras. Funciona. E só precisa funcionar. O antigo capitalismo, em que se produziam coisas, e “produziam” significa que havia por ali pessoas, os trabalhadores e os capitalistas, vai ficando para trás. Ainda se fabricam coisas “de verdade”, ainda se prestam serviços, ainda se colhem grãos. Mas o capitalismo industrial está ladeira abaixo. Sua inserção nacional, também. As empresas se deslocalizam, vão atrás dos impostos menores. Com isso, geram enormes contingentes de desempregados. E fabricam fantasias: carros ingleses são alemães, os americanos são japoneses, camisetas brasileiras vêm da Coreia do Sul. Mesmo nas coisas que parecem mais concretas introduz-se o dedo virtual de uma economia que Yanis Varoufakis, ex-ministro das finanças da Grécia, chama de “O Minotauro global”. Tudo funciona um pouco “como se”. E fica difícil meter a mão em “como ses”.
Há não muito tempo havia um estado do mundo bem concreto, e que se expressava em escolhas que podiam ser pensadas. Quem queria conservá-lo ou mexer nele só um pouquinho sabia explicar por quê. E quem pretendia reformá-lo e pô-lo de cabeça para baixo ou sobre os próprios pés também tinha razões compreensíveis. Porque havia diferenças claras. Podia-se fazer mediações entre elas. Mas não anulá-las. Elas decorriam da posição que as pessoas ocupavam no processo produtivo. Quem está na máquina não está no caixa. E vice-versa. Marx, no século XIX, deu a essas diferenças não naturais, socialmente produzidas, o nome de “classes”. Colou. Classes de pessoas segundo o modo de produção dos bens e a organização social. E também ensinou que as pessoas não deviam ser julgadas. Seus atos eram fatos. E importante era conhecer, esmiuçar, teorizar e agir sobre esses fatos. Com toda a objetividade. E sem especiais malquerenças. Foi um tempo sem coxinhas e mortadelas.
O século XX produziu as revoluções que Marx, com convicção científica, previu. Ou melhor — não. As revoluções foram feitas onde não estavam maduras. Lênin explicou: era preciso romper a cadeia pelo elo mais fraco. Era a Rússia, que mal tinha um operariado fabril. Fez-se. Chamou-se marxismo-leninismo. Stálin garantiu que o cerco internacional exigia fazer a revolução num só país. E adeus internacionalismo. Mao viu logo que uma revolução socialista não se faria num país camponês. Inventou a teoria do cerco das cidades pelo campo e queimou etapas no processo histórico da China. Virou, mexeu, essas revoluções com demãos de tinta superpostas regressaram ao capitalismo com que nunca tinham verdadeiramente rompido. Capitalismo de Estado, que por lá houve, capitalismo é. Só muda quem se apropria da mais-valia do trabalho. Os trabalhadores continuam mal das pernas. E a estrutura de classes se desloca, mas não desaparece.
Fico pensando nos grandes quadros renascentistas que precisaram de restauração. Com muito cuidado as camadas sobrepostas foram retiradas, e as imagens originais resplandeceram. Marx está precisando de uma restauração. Leninismo, stalinismo, maoísmo são tintas que não estavam lá. Precisam ser removidas. Gramsci fez umas tentativas. Pareceu revisionismo, coisa muito feia na esquerda. Mas está na hora. Nada mais se aplica à compreensão do mundo porquería. Coxinhas e mortadelas, francamente, não são categorias analíticas.
Marx pode surpreender. Pode acabar, por exemplo, com a ideologia do “homem novo”, que faz pensar numa natureza angélica perdida. Ele se interessou pela natureza humana, nos escritos anteriores a 1848. Mas não assim. Não nos faria mal irmos dar uma olhada.
Vamos começar de novo? Porque, convenhamos, o mundo está mesmo una porquería. Mas entre o estrume e a estrela deve haver algum lugar para nós.