Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Um retiro

Um gesto de ternura, que é um modo da presença de Deus, e uma pequena luz se acende

Publicado no jornal O Globo (24/06/2017)

Passei no feriadão meu tempo num retiro que fazemos anualmente. Fazemos quer dizer: grupos de reflexão espiritual do Rio, de São Paulo e de Belo Horizonte, umas 60 a 100 pessoas, sob a inspiração de Frei Betto. Foi na linda Serra da Moeda em Minas. Frio de rachar. E sol. Tudo bem disposto para uns dias fora do comum do mundo convulsionado em que vivemos. Alienação! — há de logo acusar alguém apressado, antes de chegar ao fim da coluna. Nada disso.

Discussão da conjuntura nacional e internacional sempre tem. Dessa vez, momento de perplexidade, dificuldade de manter acesas umas esperanças pelas quais vivemos. Está duro... E também bebemos e comemos, e cantamos, e contamos casos, na alegre amizade de pessoas que só se veem uma vez por ano e se amam. E, claro, discussões, leituras, silêncio. Tem de ter. É um retiro. Mas nada de carolice. Tem ateu lá. Diferentes modos do cristianismo. Cultores de religiões de origem africana. Budistas. Fundamental é que sejam pessoas que, em busca das dimensões espirituais da vida, estejam inquietas com os rumos do mundo e apaixonadamente empenhadas em mudá-lo, pouquinho que seja. O tema dessa vez foram as bem-aventuranças.

Um dia Jesus subiu ao monte e pronunciou o “sermão da montanha”. Foi nele que proclamou as bem-aventuranças. Bem-aventurados, disse, os que têm um coração sem orgulho, um coração de pobre (porque quando se realizar a linda utopia de vir a nós o Reino de Deus, esse será o seu lugar); e os mansos, os que são doces (porque deles será uma terra redimida); e os aflitos, porque sua aflição olha para os poderes do mundo e a tristeza imposta à vida: esses serão consolados; os que têm sede e fome de justiça, que enxergam com olhos de futuro bom o mundo que anda mau (serão saciados); os misericordiosos, que têm para o próximo um espírito de acolhimento, e são amorosos (e alcançarão misericórdia); os de coração puro, que não desejam poder, não humilham a vida (a esses foi prometido que verão a Deus); os que promovem a paz, e são pacíficos, e andam aturdidos pelo mundo e seus terrores (e serão um dia chamados filhos de Deus); bem-aventurados, e felizes, os que são perseguidos por causa da justiça que buscam – porque deles é o Reino, que desde já vão promovendo. Porque o Reino de Deus não é uma abstração futura, um mundo bom flutuando acima do mundo mau. É para começar agora, e por nós. É o que alimenta o nosso desejo de futuro.

É todo um programa para a vida e a História. Não é pura contemplação e êxtase. É aposta. Se esse futuro vier, ganhamos tudo. A Humanidade toda ganha tudo. Se não vier, não teremos perdido nosso tempo e nossa vida, porque teremos agido como se ele estivesse para chegar. Apesar das evidências em contrário. Sobretudo, não teremos perdido a esperança. É triste viver quando se perde a esperança. São Francisco não perdeu. E o tempo dele era um bocado ruim. Mas ele ia pelas estradas cantando, e chamava o lobo de irmão. Até a morte, irmã. Nós por lá, no nosso retiro, também cantamos. Muitas vezes, músicas “profanas”, como as que o santinho de Assis cantava. Cantava e dançava. Nós também. Consideravam-no meio louco. A nós já não mais. Ultrapassados, talvez. Ingênuos. Não nos importamos. Temos umas certezas doces, que são esperanças vivas e não se apagam porque os tempos viraram para quadrantes ruins.

Terá alguma vez sido diferente? Mundo bom e fraterno, povoado de simples de coração, misericordiosos, mansos, justos, pacíficos, consolados nas suas aflições? Um mundo de final de contos de fadas, em que todos vivem felizes para sempre? Certamente que não. Mas esse mundo não melhorou nada? Nem que tenha sido nas intenções? De bem intencionados o inferno está cheio, dizem. (Pode ser, não conheço o inferno, não tenho como atestar.) Mas uma vida guiada por intenções boas é melhor do que uma mal-intencionada. E muitas vidas assim podem mudar o mundo. Pouco que seja, mas elas têm o tempo a seu favor. Dia virá.

Quem acha que não e chegou até aqui nesse artigo há de pensar que perdeu seu tempo. Não perdeu. Se no seu desânimo com o futuro morar uma desesperança entristecida, há esperança. Porque pode bastar um pequeno gesto de ternura por perto da sua tristeza para que o desânimo se abale. Quando a luz se acende, é de uma vez. O comutador das nossas casas é um simulador de esperança. Antes, escuro completo. De repente — clic — a completa claridade. Não vamos esperar tanto, é coisa de milagre. Um gesto de ternura, que é um modo da presença de Deus, e uma pequena luz se acende. Pode ser bastante. Pode não. Vivemos para apostar que sim. Um retiro é um recarregamento dessa aposta. Não é um escape. É uma entrada mais vigorosa e alegre na vida.

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)