A universidade certamente não é o melhor meio de vida. Mas é, para os que a amam, a melhor maneira de viver. Nossos colegas da Uerj podem contar histórias assustadoras de descaso e desprezo, desrespeito e crueldade. De um governo cego, surdo e mudo como as deusas da Justiça. Não por imparcialidade. Por omissão criminosa. Mas mesmo para eles, entristecidos na alma, a universidade ainda é a melhor maneira de viver. A das grandes alegrias. A das boas fraternidades.
Sou professor há quase 50 anos. É uma vida. Uma vida feliz. Os meus alunos são parte fundamental da alegria que carrego. Talvez porque entre nós se passe essa coisa extraordinária: eles não envelhecem! Passa-se o tempo e eles mantêm seus 17 anos. E eu fico um ano mais velho. Ninguém dá por isso. Deve ser um caso raríssimo. Porque apesar disso, quanto mais os anos rolam mais próximos vamos ficando. Os de agora podiam ser meus netos. E diz-se que ter netos é a mais maravilhosa das experiências. Pois eu tenho esses. Nas primeiras aulas eles ainda não sabem. Eu sei, mas não conto. Digo que vamos ficar amigos antes do fim do período. Acontece a cada semestre. Quando o curso termina, que difícil é nos separarmos! Vamos ao Outback, ali pertinho, e brindamos pelos bigodes de Nietzsche. É o brinde oficial das minhas turmas do primeiro período. E tem gente que deixa umas lágrimas de saudade dançarem à flor dos olhos. Inclusive o velho professor, tornado menino de novo, graças a Deus. A elas e eles. Aos meus alunos.
Alguém pode agora pensar: coitado, 70 anos, alunos de 17... Variou. Mas não, é verdade mesmo. Talvez seja um privilégio das Humanidades. Precisamos fazê-los pensar com cabeça própria, olhar para a pobreza desesperada, as discriminações, a tristeza da vida. Não para se acovardarem diante do futuro. Ao contrário: para irem lá e fazerem diferente. Utopia, eu sei. Mas professores são profissionais da esperança. Não me lembro quem disse (deve estar na internet com atribuição falsa) que não são as ideias que mudam o mundo, são as pessoas; mas as ideias mudam as pessoas. O que nós tentamos fazer é, preservada a capacidade de dissenso, usar as ideias como pedagogia da liberdade. Para que nas horas graves do seu trabalho adulto, quando os poderosos, pressionados pelo tempo tornado muito curto dessa nossa vida pós-moderna, quiserem repassar a eles os ônus da superficialidade e da mentira, não o façam. Lembrem-se da universidade, do velho professor e do amor que não se desgastou com os anos —e façam diferente. Façam devagar. Pensando. Utopia das utopias. Tem empregos em jogo aí. Mas eu sei, eles me contam, que é possível. São astuciosos, os meus alunos.
Não os deixo soltos no mundo carnívoro. A cada ano, quando todo o horizonte deles é o mercado — e está bem, é para lá mesmo que deveriam ir — eu os chamo de volta para mais uma aula. Começa assim: “Na última aula...”. A última aula pode ter sido há cinco, oito, dez anos. É uma emoção. Falo do sofrimento do mundo e dos nossos afazeres éticos. Há quem se emocione como no primeiro dia. Pois (milagre do tempo de que os professores guardam o segredo), todo dia é o primeiro, se o amor não se apagou da memória e da vida. E para aqueles que vêm, o amor não acabou. É num sábado de manhã. Dia de sono largo. Às vezes chove. Mas vêm. E depois vamos para o Outback, brindamos pelos bigodes de Nietzsche e o mundo toma um ritmo mais alegre. E tudo está bem.
Também não os deixo soltos na faculdade. Recebo-os no seu segundo dia de aula, quando seus olhos ainda brilham. Meu sonho é soltar só na defesa da tese de doutorado as mãos que peguei nesse dia. Terão sido dez generosos anos de vida. Muito poucos chegam lá, a universidade afunila, tem de ser. Mas as mãos que vou soltando pelo caminho tornaram-se mais sábias com a vida. E não perderam a esperança. Ainda não. Criei uma disciplina no meio do curso para discutirmos a globalização. E receber minhas alunas e meus alunos de volta. E rirmos de novo juntos. Rir para a vida é uma coragem. Minhas alunas e meus alunos são corajosos.
Recentemente aconteceu uma coisa inacreditável: a universidade transformou em estacionamento o espaço de convivência deles, de deitar no chão, ter ideias coletivas, namorar. O espaço de que vão se lembrar quando bater a saudade desse tempo. Estacionamento! Não pude acreditar. Combinamos de pôr carteiras ocupando as vagas e resistirmos ali, pacificamente, conversando como quem filosofa na vida. Não deu. Por isso escrevi essa crônica. Estou convidando todo mundo a se sentar no chão dessas palavras, onde os carros não chegarão. Há lugares em que a feiura de um mundo que se vai tornando insensível não tem como penetrar. Esse é um. Tomem assento, pessoal. Vamos conversar. E ser felizes mais um pouco. Isso nós sabemos fazer.