Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

República

Ser republicano até o fundo da alma poderia fazer uma tremenda revolução

Publicado no jornal O Globo (03/06/2017)

Seis séculos antes de Cristo os romanos inventaram a República. Depois de sete reis donos da cidade, decidiram que a cidade era de todos. Era populica, do povo. Era coisa — res — pública. República foi a grande criação romana para dizer que os negócios da cidade têm dono, e o dono não é um rei. Aquelas letras SPQR que vemos nos em geral péssimos filmes sobre Roma significam “O Senado e o Povo Romano”. E isso seis séculos antes de Cristo. Temos o mau hábito histórico de pensar nos gregos como fundadores absolutos da cultura ocidental. Mas, no mesmo século em que eles nos deram a filosofia e foram preparando o que depois seria a democracia ateniense, os romanos criavam a ideia de que o governo se faz pelo povo. Perdemos essa memória.

Hoje a todo momento ouvimos dizer que alguém fez acordos pouco republicanos, ou que pretende agir republicanamente. E ficamos achando que isso tem alguma coisa vagamente a ver com democracia, partidos, política. Em parte tem mesmo. Mas república não é democracia. A democracia é uma invenção ateniense. É o governo do maior número. Foi inventada para se opor à plutocracia dos ricos e à aristocracia, ambas condescendentes com os tiranos. A república é outra coisa. Ela nos diz que o governo da cidade é atribuição do povo todo. Porque a cidade é coisa pública, não pode ser privadamente apropriada por alguém que se acredite acima do comum. Enquanto na democracia o que rege é o número, a maioria, na república a regência é dos valores. Os valores republicanos, diz-se. Para os antigos romanos isso significava: as virtudes. Não era possível ser republicano sem ser virtuoso. Ideia estranha, hoje... Virtudes, como assim? É preciso ganhar eleições, obter governabilidade, fazer acordos espantosos por ela. Virtudes seriam alguma coisa como programas partidários, fidelidade a eles, coisas assim? Sim, isso também. Mas são sobretudo a compreensão de que a coisa pública é pública mesmo, não pode ser privatizada ou patrimonializada sem que se esteja cometendo um crime contra a República. Entre os velhos romanos atos assim eram considerados traição, e os traidores atirados do alto de uma rocha, a Tarpeia, e esborrachados contra pedras pontiagudas lá embaixo. Muito violento, com certeza. É que era sério. Hoje enche-se a boca com a palavra república, mas o respeito pelo comum, que é a essência dessa visão de mundo (é mais do que um regime político) — nada.

Havia eleições também na república romana. E como! Votava-se para cônsul, pretor, questor, tribuno da plebe e dos soldados, que, sob a regência dos cônsules — dois de cada vez —, conduziam a administração por um ano. Assembleias — do povo, que incluía os patrícios, as velhas famílias; da plebe, em que eles nem podiam entrar; dos soldados, que elegiam os tribunos militares; das centúrias, em que se representavam todas as tribos de que era constituída a complexa trama social de Roma. Para cada tipo de eleição, um tipo de assembleia. E, acima de tudo, essa maravilha: quando um tribuno da plebe, eleito sem a participação dos patrícios, se levantava e dizia a palavra mágica VETO, na hora parava tudo. Lei, projeto, resolução, o que fosse. Em contrabalanço aos senadores, que o eram por fortuna, não por eleição, os representantes eleitos pela plebe tinham o poder — absoluto — de parar tudo. E mandar começar tudo de novo.

Havia também ditadores, claro. Mas sem usurpação do poder popular. Ditador era um cargo previsto na constituição romana não escrita. Em casos extremos, o Senado propunha ao povo o nome de alguém para governar excepcionalmente. Por tempo determinado. Ditador tinha mandato! (Meio indireto, é verdade...) Suspendiam-se provisoriamente as leis, mas em certo prazo o governo era devolvido ao Senado e Povo de Roma. E a coisa pública, preservada pelo ditador durante, por exemplo, uma guerra civil, voltava ao seu regime normal, às suas virtudes de legalidade, lealdade, dignidade e honra. Pois é, honra.

A república romana também inventou os comícios. Num certo espaço perto do Forum, a comitia, um representante do Povo ou do Senado podia convocar uma deliberação excepcional. Em vários dias de, justamente, “comício”, a matéria era discutida, seu mérito avaliado e as decisões cabíveis tomadas.

Havia corrupção, é verdade. Compravam-se cargos, compravam-se pessoas para ocupar esses cargos. Feia mancha, sangrenta cicatriz. Essa parte as nossas atuais repúblicas aprenderam e aperfeiçoaram com volúpia. O resto, não. A república, experiência de dois mil e seiscentos anos, é hoje uma palavra protocolar. Ser republicano até o fundo da alma poderia fazer uma tremenda revolução. Contra os hábitos políticos atuais, contra a desmoralização das virtudes, a república é uma profunda subversão. Profunda e boa subversão.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)