O filósofo americano Richard Rorty disse que a verdade é a quinta roda do carro. Não tinha, no contexto, nenhuma intenção malévola. Mas o fato é que ele não acreditava na verdade, verdade mesmo. Nem na democracia. Porque não acreditava na representação. E representar está no coração da democracia e da verdade. No coração assustado da democracia e da verdade. Pois hoje dizem que ambas não existem mais. A verdade se esgota na simulação das situações. E a representação não é mais do que engodo e manipulação. Dizem assim. Mas como se mente muito nesses tempos de pós-verdade, acho que não devemos aceitar esses dizeres sem apelação. Vamos apelar.
A verdade é coisa muito antiga. Uma paixão muito antiga. Os velhos gregos precisaram de um princípio absoluto para dar conta de haver no mundo essa explosão de coisas diversas, e no meio disso tudo nós, os humanos, pequenos e doidos de medo de nos dissolvermos nessa demasia de mundo. Como uma gota no oceano. Comparação banal, tanta gente já usou! Mas façam a experiência. Levem uma gota em um conta-gotas e a pinguem no mar. Onde está a gota agora? Em nenhum lugar. Sumiu. Não é verdade que o mar é um coletivo de gotas. O mar é o seu túmulo. Gota só existe quando o conta-gotas vai lá e delicadamente a retira das águas excessivas. A verdade foi desejada por gregos atordoados pelo infinito do mar como um conta-gotas do mundo e da vida.
Os Antigos sabiam que o oceano era o túmulo da diversidade. Chamaram-no thalassa, que quer dizer abismo. Um conta-gotas contra o abismo. Coisa de heróis. Nós nos esquecemos de que a verdade nos protege do abismo. Por isso hoje podemos com um gesto mole de mão dizer “larguem essa bobagem para lá, essa coisa velha de verdade”. O problema é que a busca de proteção do mundo e da vida que representou o amor à verdade não é velha coisa nenhuma. Porque o abismo é sempre novo. Abre-se sob os nossos pés com bocas sempre diferentes, mas é bem do abismo que em cada caso se trata. Hoje tem nomes como fundamentalismo, ódio universal, terrorismo. Fome de meia humanidade. Navegações desesperadas na noite. E vai nos engolir. A verdade é uma ponte sobre o abismo, um arco-íris, um outro lugar. Sem a verdade o abismo fecha a boca sobre nós. Não tem graça nenhuma.
Na tradição cristã, Jesus disse aos seus discípulos: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”. A verdade é também caminho. Sem ela não se chega ao coração da vida. Fica-se parado e inútil como um carro que furou um pneu. Ainda há pouco rodava tranquilo, na convicção de que chegaria a algum lugar. E o pneu furou. Na mesma hora o carro se converteu de atravessador de caminhos em composição inútil de ferrarias e fios. A não ser, claro, que tenha uma quinta roda. Vai-se abrir o porta-malas — e nada! A quinta roda sumiu. O carro acabou. Na hora de apurar a utilidade das coisas, a quinta roda é a mais importante. Se sumir, fim da linha. Hoje trafegamos sobre quatro rodas, as da simples eficácia. Oxalá não nos fure um pneu! Rapidamente vamos descobrir que a utilidade marginal do estepe é desmesurada. E andava escondida lá atrás. A verdade também é estepe. Conta-gotas e estepe. E ainda se diz que não já não serve para nada...
Os velhos gregos também inventaram a democracia. Acreditaram, a certa altura da sua História, que seria uma boa coisa os homens poderem se reunir na praça e decidirem sobre os assuntos da cidade. As cidades cresceram, e deu-se a engenhosa ideia de delegar a alguns, eleitos para isso, a representação de todos, para deliberar sobre o que já não cabia na praça. O mundo tinha ficado grande demais. A democracia moderna, a da Revolução Francesa, é assim: representativa. Não pode lhe faltar o povo rondando os parlamentos, não deixando os representantes se esquecerem de que os representados andam por ali, estão atentos. Mas não se delibera sem representantes num mundo tão imenso. Representar o povo é a verdade da política. Sem representação as tiranias de todos os tipos se alastram. A lepra da política é o desprezo pela representação. Que se faz por um papelzinho ou pelo dedilhar num teclado. Chama-se voto. É simples, rápido e indolor. —Mas (dizem) representação não há mais. É um conceito antigo, gastou-se, caiu em desuso. Aí alguém dá um golpe, toma o poder e o pessoal reclama. Está reclamando de quê? Não acabou a representação? — Só que não. Queremos ter coisas a dizer, a nossa palavra é a essência da democracia. Precisamos ser representados. Vamos falar agora de fim da representação, da verdade da representação? Está bem. Joguem a gotinha do conta-gotas no mar e observem como se fecha o abismo. Joguem fora o estepe e esperem que se feche o caminho. Desprezem a representação e deixem que se cale o povo.
Mas depois não venham reclamar.