Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

O tempo da gripe

Antes a perda de tempo seria um sofrimento. Não é mais

*Leia no site dO Globo ou abaixo (13/05/2017)

A gripe me pegou duas semanas. Tosse em mim. Não me deixa dar aulas. Dificulta escrever. Mas, que remédio? Vou tocando. E essas férias forçadas vão me dando o que pensar. Penso no tempo da gripe. Tempo houve em que essa perda de tempo seria, era, um sofrimento. Não é mais. Isso é um fato. E quando encontramos um fato, desses que não solicitam versões ou narrativas, são brutos, dá-nos um grande reconforto

Há coisas que resistem às verdades alternativas. Ao mais ou menos do tanto faz. Coisas humildes, mas poderosas na sua capacidade de se manter de pé frente à avalanche das relativizações. Minha gripe é dessas. O tempo da minha gripe. O que a gripe, a minha, me dá a pensar sobre o tempo. Santo Agostinho disse que entendia esse mistério, mas, se lhe perguntassem, já não sabia mais. Imagino Santo Agostinho gripado, forçado a suspender o tempo comum. Que livro não nos teria chegado da gripe de Santo Agostinho!

O que eu dizia é que houve tempo em que essa perda de tempo era um sofrimento. Era mesmo. Não só o das gripes, que eu tinha frequentes. O das férias também. O dos fins de semana. O dos feriados. Um tormento que desequilibrava o metabolismo da minha alma. A suspensão do tempo me impedia de trabalhar, eu gostava de trabalhar e ficava desgostoso. Como criança que espera o Natal, faz calendário regressivo para chegar à noite mais esperada do ano, nos fins de semana eu ia descontando: falta um dia e dois terços; um dia e meio; um dia; meio; é amanhã. E como amanhã demorava! Quando amanhecia finalmente, eu acelerava como carro que ficou com um pé no freio, outro na embreagem: solto, saía cantando pneus. Ia para a vida.

E a vida, Fagner disse, é trabalho. Aprendi umas coisas de lá para cá. Mas era assim. Feriados, então! Dias anormais, encaixados entre dias razoáveis. Um dia de semana que parecia fim de semana. E suspendia os ponteiros da vida. Férias longas, de um mês... Que tortura as férias longas! Se em uma semana resolvia-se essa coisa de cansaço, por que espichar? Dei muito trabalho à minha mulher, que tinha a correta noção de que um tempo sem trabalho pode ser um bom tempo de vida.

Passou. Hoje curto férias, fins de semana são bênçãos hebdomadárias, feriadões são expectativas risonhas. Mas precisei levar o tempo à análise. Houve comemoração interpretativa nas primeiras férias que eu preferia que não tivessem acabado. Eu tinha vencido o círculo, caramba! Estava livre da prisão do tempo. Livre para a gratuidade do tempo. Quase podia jogar fora o relógio e o calendário. Quase... Marcar o tempo ainda é uma necessidade.

Parece que me dei conta do seguinte. Eu era moço. Pouco tempo para trás, todo o tempo pela frente. Mais futuro do que passado. Muitos projetos, não havia tempo a perder. Correram uns anos. Passado e futuro (o futuro previsível, esse de ficar velho) começaram a se equilibrar. E já dava para comparar o feito e o desejado. Fiz umas coisas. Queria mais. Mas fiz aquelas. Não estavam mal. E do muito que ainda ficava pela frente já não dava para fazer tudo. Era preciso escolher. Escolhi. E a massa dos ainda-a-fazer diminuiu. E deu-se esse paradoxo: o futuro, mais curto do que o passado, ficou ainda assim menos engarrafado, e o tempo ficou menos tenso. Deu para desacelerar um pouco. Não ia dar para tudo mesmo. Paciência. Paciência não é uma virtude de quem persegue o futuro. Aprendi.

Passaram mais uns anos; na verdade, muitos. O tempo ainda por vir objetivamente encurtou um bocado. Mas aconteceu essa coisa extraordinária: eu, que lá pelos cinquenta me conformei com a retração do tempo por vir, aqui nos setenta nem me preocupo com isso. Tenho oito livros para escrever de uma história que estou contando. Estou no quarto. Os outros virão. Tenho tempo. Hoje não vai dar, que a tosse é inimiga da filosofia.

“Filosofia”, por exemplo, foi uma palavra escrita em três arrancos tussígenos. Imagino “Schopenhauer”. Ou “Nietzsche”, que tem som de espirro. Mas amanhã dá. Ou não. Depois de amanhã. Hoje, dia em que escrevo, ainda não dou aula, a tosse não deixa. Não digo que não me aflija não dar aula. Mas amanhã dá. Ou depois de amanhã. Tenho tempo. O tempo já não me tem. (Não por inteiro...) Cheguei à idade em que o jogo estaria nos descontos, e que nada! “Tempo, tempo, tempo, tempo, és dos deuses o mais lindo”. Caetano sabe. Fiz as pazes com os dias mortos. Não são mortos. Têm uma vida de outra qualidade.

Às vezes, qualidade ruim. Gripe não é bom tempo. Mas ficamos vazios, vagabundos de alma, porque o corpo não ajuda. E acabamos pensando algumas coisinhas, para entreter o tempo. E pensar é bom. Vivemos um tempo em que pensar está entrando em desuso. Nesse caso, uma epidemia de uma gripe benévola podia dar uma boa melhorada no mundo.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)