Hoje, nela a verdade brilha ou naufraga?
*Leia no site dO Globo ou abaixo (06/05/2017)
Todos queremos ser objetivos. Dizer as coisas como elas são. Quando rompeu a Modernidade no século XVII a filosofia fez um pacto com as ciências nascentes: eu fico com o sujeito, que pensa, vocês com os objetos do mundo. As ciências aceitaram sem pestanejar. Desde o século XVI Galileu tinha lhes dado essa norma: descrevam quantidades; as dimensões qualitativas das coisas, deixem cair. Essa foi a regra de ouro da objetividade. Muita coisa boa saiu dessa norma. Muita coisa ruim também. Nessa nossa hora pós-moderna vale um pequeno balanço de lucros e perdas.
À ciência a objetividade fez muito bem. E teve uma aplicação inteligente. A filosofia queria empurrar para as novas disciplinas aquelas coisas fora do sujeito — esse computador, a mesa, o copo — de que não conseguia mais dar conta. A ciência aceitou. Mas imaginem se ia se limitar a conhecer a maçã que caiu na cabeça de Newton. Ela foi é calcular a força que manda as maçãs caírem — e os astros girarem, e os corpos se atraírem. Descobriu a lei da gravidade. Uma lei universal. E ficamos para sempre devedores da objetividade científica. Se bem que... No primeiro quarto do século XX uma nova física, a quântica, começou a pensar assim: tenho essa matéria debaixo da minha lente; pergunto: quem é você? — e ela me responde como partícula; pergunto: onde você está? — e ela me responde como onda. Ora, objetivamente, ou bem partícula, ou bem onda. Só que não. Partícula ou onda, dependendo da pergunta. E quem faz a pergunta é o sujeito. A física quântica introduziu o acaso e a subjetividade na ciência. E acaso e objetividade não deviam andar juntas. A objetividade diminuiu. Mas tudo bem.
Vamos olhar o campo da informação. A objetividade pode não ser absoluta, porque somos nós, humanos, que fazemos circular as informações — e nós somos (ainda; há também os robôs na rede) sujeitos. Temos interesses, anseios, esperanças, raivas. Mas devemos todos, os honestos, procurar a verdade, a escondida verdade. Precisamos ser tão objetivos quanto nos for concedido como simples mortais. Dizer a verdade é só o que legitima nossas profissões: professores, jornalistas, filósofos, os buscadores dos sentidos das coisas e dos fatos. No entanto... Pois é. A massa de informação circulante, e a velocidade da sua circulação, e a necessidade de chegar na frente está dando mais destaque às versões e às narrativas. A patologia dessa conjuntura são os tais fatos alternativos. Neles, a verdade naufraga catastroficamente. Nas versões e narrativas ainda pode ser decantada? Quem sabe? Esperança... A não ser, claro, que jornalistas e professores estejam tão seguros das suas versões que a verdade se torne um preciosismo de filósofos. Que são a parte mais fraca. Vejam só: lá atrás, a filosofia quis pôr a ciência em maus lençóis propondo-lhe uma objetividade impossível. Quatro séculos depois, a ciência, por meio das suas tecnologias informacionais, vem deixar a filosofia de queixo caído: objetividade e verdade não rimam mais.
E na política? Na democracia? A essência da representação é que o representado se veja na ação do representante. Objetivamente, representantes e representados se reconhecem em programas e ações coerentes com eles. Essa é a base objetiva da democracia representativa, essencial a toda democracia. Porém... Hoje andamos, como o filósofo Diógenes, no século IV a.C., com uma lâmpada acesa procurando. Ele, um homem honesto. Nós, um político que nos represente. O pessoal por aí anda perdido. Objetivamente. Houve também uma horrível patologia da “objetividade” política. Muita “informação” foi arrancada na cadeira do dragão e no pau-de-arara, e nos Processos de Praga, com base na “objetividade”: “Conhece esse homem?” — “Não!” — “Nunca esteve com ele?” — “Não!” — “Na festa em tal lugar, você estava lá e ele também!” — “Mas eu não o conheço!!” — “Mas, objetivamente, vocês frequentam os mesmos lugares!”. E pronto. Prova feita. Prisões, mortes e expurgos. — E, hoje, a “objetividade” das delações desesperadas, resultado de longas prisões que em outros tempos teriam outros nomes...?
Pobre objetividade. Hoje, nela a verdade brilha ou naufraga? Como vamos saber? Nós, sujeitos que sofremos o pão que o diabo amassou quando não dispomos da verdade? — Talvez haja um começo de caminho se nós, com nossos sonhos e qualidades, boas e más, tomarmos carinhosamente a objetividade no colo e a levarmos a passear. Para fazer um novo pacto. Que desbarate as versões sem verdade e as narrativas-fantasia, e ponha luz na casa. A casa está uma imundície. Fizeram gato e sapato com a valiosa objetividade. Jornalistas, professores, filósofos, gritai! Porque, objetivamente, trata-se aqui das nossas vidas comuns. Dos sujeitos que, objetivamente, estão nos fazendo deixar de ser. Objetivamente, não dá!