Às vezes me pego encabulado por não ser índio, indiano ou vivente na África profunda. Ouço dizer que esses vivem no respeito aos outros e no amor à natureza, e fico de olho úmido quando olho para esse nosso Ocidente e vejo as várias formas de destruição e falta de amor de que padecem os nossos povos. Mas tenho orgulho dessa nossa cultura. A que inventou a democracia e a república, e a política como meio de convivência social. E deu Sócrates, Homero, Júlio César e Cícero, Ptolomeu, Copérnico e Galileu. E Leonardo da Vinci, Dante, Shakespeare e Camões. Criou as universidades e rasgou as catedrais. Gerou a ideia de tolerância. Fez a revolução francesa, a americana, a russa e a industrial. Criou o Estado de Bem-Estar Social. Tenho orgulho dessa civilização a que pertenço. E ódio ao mal que ela faz aos refugos de humanidade que vai criando por ganância e desprezo. Nessa ambivalência se sustenta o meu modo de estar na vida.
Quando ouço falar dessas culturas que vivem em harmonia com a natureza e os outros penso logo no Paraíso. Vejo os anjos satisfeitos com essa parte boa da humanidade, tanto quanto estão tristes com a nossa. Não posso ver um anjo triste. E fico espantado com a nossa maldade. — Depois me lembro das relativizações.
A ideia de relativização entrou na nossa cultura para pararmos de tratar sociedades diferentes como “primitivas”, crenças distintas como “simples”, atrasadas. Foi um grande feito da antropologia moderna a criação desse conceito. A partir daí passamos a procurar o lado de dentro de uma sociedade diferente. O que será que há de próprio e irredutível aos nossos hábitos e costumes que tornava legítimo que os homens chineses amarrassem com apertadas bandagens os pés das suas meninas para que as mulheres tivessem pés submissos? Que valor intrínseco faz com que na Índia as vacas sejam sagradas? Por que, em certas regiões da África, parece natural a tantos que meninas não possam ir à escola? O que legitima que déspotas árabes e nababos africanos sejam donos dos seus países, como se a propriedade privada do que é público fosse uma evidência natural? E as teocracias? — Tudo isso tem sentido, não tenho dúvida. Nós não o conhecemos, dizem-nos, porque somos viciados em valores ocidentais. E aí corremos o risco de não ver o diferente. Precisamos olhar com olhos generosos, olhos que abraçam, os nossos irmãos que seguem suas vidas por outros caminhos. Sem isso, estaremos condenados a diversas patologias, da cegueira dos que se comprazem com seus próprios umbigos à violência com que reduzimos o mundo ao nosso quintal e subjugamos os povos ao nosso prazer. Relativizar é preciso.
Mas não é tão simples. Nós criamos, na nossa longa história, uns valores que consideramos universais. Liberdade, igualdade, fraternidade. Democracia. Direitos humanos. A cultura como pedagogia da vida. A liberdade de pensamento e de expressão. A liberdade religiosa. A liberdade sexual. A educação universal como valor civilizatório. As ideias de progresso, evolução, revolução. A laicidade. Direitos civis. Direitos políticos. Direito. São todos princípios pelos quais lutamos. Nenhum nos caiu no colo. Foram conquistas, guerras de que nem sempre podemos nos orgulhar. Ganhamos umas, perdemos outras. Os romanos inventaram a República e depois a sufocaram no Império. Mas ela voltou. A democracia grega tinha por base a escravidão. Não tem mais, mas ainda lhe falta muito para ser de fato democrática. Continuamos a lutar por ela. — A dificuldade, dizia, é que, sendo esses valores, justamente, universais, fica às vezes muito difícil relativizarmos. E, dizem-nos (deve ser verdade), relativizar é preciso.
Aí vejo o Boko Haram sequestrando as meninas das escolas. Se me esforçar muito, certamente vou encontrar uma causa muito antiga para que mulheres não devam se instruir. A questão é que não quero fazer esse esforço. O Boko Haram viola alguns dos valores mais sagrados da minha cultura. Olho para a Ásia e vejo multidões famintas tropeçando em vacas que passeiam, seguras de nunca virarem bife para essas fomes. Não sei por que as vacas são sagradas. Eles sabem. Mas, nesse caso, o que eles sabem não me importa. A fome que mata e humilha é um pecado humano e social aqui, na minha cultura. Por que seria apenas um hábito cultural a ser relativizado ali na Índia? — E assim por diante. Creio que está claro.
O que quero dizer é: os valores universais da cultura europeia têm os mesmos direitos daqueles que vamos descobrindo nas outras culturas quando relativizamos. Por que então ninguém “relativiza” os nossos? O nosso direito, por exemplo, de universalizar o mundo? Será errado insistirmos naquilo que constitui a nossa mais profunda identidade?
Precisamos ter vergonha desses valores, porque não são iguais aos dos outros? Será o Benedito?