Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Os místicos de olhos abertos

Há uma Humanidade suspensa das palavras esquecidas

*Leia no site dO Globo ou abaixo (15/04/2017)

Já disse aqui: a atitude mística pede olhos fechados para ver com mais clareza. Não para ocultar da vista as imagens da tristeza sem remédio, da pobreza sem pão. Não para fugir de um mundo ruim numa espécie de contemplação de imagens etéreas fora da vida. Os místicos têm o mais radical compromisso com a verdade. Não abandonam o mundo. De olhos fechados, olham para ele pelo olho de Deus. São, os místicos, os mais videntes dos seres humanos.

Tocados pelo Espírito, que venta dentro dos olhos apagados para as luzes tristes dos homens tristes. — Mas tempo chegou de os abrirem. Continuarão tocados pelo brilho da visão de Deus. Mas verão o que nós todos os dias somos obrigados a olhar: o mundo destruído pelos muito poderosos, a vida humilhada pelos muito insensíveis. A Criação em risco. A impotência de Deus. Quem sabe seus olhos lúcidos possam dar claridade a um mundo tornado escuro, a uma vida convertida à tristeza? — Abram os olhos sobre nós, irmãos da luz de Deus! Deus os teve fechados ontem, mas entre hoje e amanhã de novo os abrirá.

A mística não é um modo de fugir. É um jeito extraordinário de habitar. A mística é uma ética. Um esforço de presença carinhosa, que descobre mananciais de esperança quando, aqui fora, morremos de sede. Porque eles, os místicos, olham para os olhos de Deus. Nós, para a terra devastada. A dos bombardeios vindos do Mediterrâneo, o mesmo em que crianças desaparecem nas águas noturnas do abandono. Crianças como as sírias, que sufocaram em desespero, com o ar comido pelo gás. É preciso que os místicos vejam as bombas na igreja do Egito, no palácio de Londres. E os caminhões assassinos. Precisamos de místicos tristes. Para que se inverta o foco do olhar: que através dos deles Deus possa ver o seu mundo comido pela morte. Que veja o que fizemos com a casa que nos deu, e agora ficou além do intolerável. — Precisamos da tristeza de Deus.

Tem sido fácil aos homens que governam os povos e fazem a guerra olharem para os místicos como uma árvore poderosa vê seus parasitas: pessoas inertes, preguiçosas para as grandes coisas, recolhidas da terra. Mesmo os simples, que deviam amá-los, às vezes os enxergam como gente que se pôs acima da dor dos que vivem nos limites da vida. Mas não. Os místicos fecham os olhos pela mais extrema compaixão. Porque não podem acreditar que Deus destinou suas criaturas a tanto sofrimento. A tão imensa desigualdade em tocar os bens da terra e do trabalho. E vão procurar. Sabem que a vida não está destinada à humilhação até os limites do desespero e da morte. Vão ver na fonte outros futuros. Outras esperanças. Não são fujões do sofrimento.

São Francisco viu a igreja derruída. Quis reerguê-la com suas mãos humanas. Mas Deus o chamava para uma reconstrução de que mãos apenas humanas não dariam conta. E lhe deu uma visão capaz de ver além das distinções, todos iguais, o leproso e o lobo, o sol e a morte. Seus irmãos. Não se recolheu numa meditação sem fim: fundou uma comunidade dedicada ao amor e ao perdão. Pediu esmolas, porque nada tinha nos bolsos quando saía a pregar um lugar melhor. Seu trabalho estava além de qualquer possível remuneração.

Os monges, recolhidos nos seus monastérios, eram vistos com desconfiança pelos aldeões de cujo trabalho viviam. Mas os monges rezavam. O mundo em que uns trabalhavam e outros guerreavam era cortado da contemplação de Deus. A morte o habitava. A das matanças e a das doenças. E a da fome. Os monges rezavam pelo mundo. Chamavam a atenção de Deus. E não fugiam. Estudavam, traduziam, escreviam, mantinham vivo um outro mundo, guardavam para os homens um futuro. Talvez — quem saberia? — menos feroz.

O pequeno homem santo e o monge recolhido entre a cela e a biblioteca tinham isso em comum: comoviam-se com a Humanidade. Comover-se, mover-se junto com. Os olhos fechados na contemplação olhavam para a Humanidade torturada e depois para Deus. Viam as imagens terríveis dos demônios da vida — e depois Deus. E voltavam com o corpo lacerado pelas tremendas visões. E falavam. Dos olhos que viram tudo brotavam rios de esperança. E um amor bastante para a vida. Precisamos que agora eles, que enxergaram a perfeição, olhem para nós, e profundamente se comovam com uma Humanidade que perdeu o caminho da luz. A Humanidade noturna das bombas e da pobreza que mendiga sem ter o que oferecer em troca. Só para comer. E desse olhar brote a comoção do absurdo. E que sussurrem aos ouvidos maltratados de Deus. Ele estará daqui a pouco renascendo de entre os mortos. Contemplou o sofrimento indizível. Eles, os místicos, precisam falar por Deus. Há uma Humanidade suspensa das palavras esquecidas. Uma que espera que da tristeza dos místicos e do sofrimento de Deus uma ponte nasça que nos leve a algum lugar. Um lugar pacífico. Um lugar melhor.

oto: Gustavo Stephan (O Globo)