É hora para a poesia?
Na China e no Japão antigos o último gesto de vida de um samurai antes do suicídio ritual era compor seu poema
*Leia no site dO Globo ou abaixo (08/04/2017)
Tem hora a poesia? “Faz escuro mas eu canto”, escreveu, como quem grita contra a noite, Thiago de Mello. “...um terceiro tom/ a que chamamos aurora”, disse Drummond, num poema triste. “Meio dia, hora da sombra mais curta. Uma algazarra de todos os diabos”, foi a palavra de Nietzsche. “A tarde semeia ruínas sobre o corpo”, também disse alguém, atento ao tempo. E Manuel Bandeira: “O dia foi bom, pode a noite descer. (A noite com os seus sortilégios.)” Não há tempo para a poesia. Ela é maior do que os ponteiros que passam. Fica para sempre, como o quarto de Bandeira, “intacto, suspenso no ar”. A poesia está suspensa no ar. Nós a respiramos. Só da música somos mais devedores para viver. “A música antes de qualquer coisa”, escreveu Verlaine. Mas era preciso um poeta para dizer assim tão claramente a verdade.
Andamos necessitados demais da poesia. E dos poetas. Eles já foram os anunciadores do futuro e os senhores do passado. Homero cantou o começo da Grécia. Hesíodo, os inícios do mundo. São João da Cruz anunciou as bodas com o Amado, a fusão futura com Deus. Também cantaram o presente, “o tempo presente, o mundo presente, a vida presente” (de novo Drummond). E sonharam. Rilke sonhou. Rimbaud sonhou. Porque sonhar é do homem. Precisamos demais dos poetas porque estamos perdendo a capacidade do sonho. O gosto. A necessidade. Não falta muito, e nos convenceremos de que os sonhos, no final das contas, não são úteis. Ocupam o espaço das compras. E já tudo foi escrito, no tempo em que a humanidade, pouco prática, vivia se encantando. A poesia de todos os tempos talvez valha um arquivo bem compactado. E pronto. Depois, as coisas sérias.
Na China e no Japão antigos o último gesto de vida de um samurai antes do suicídio ritual era compor seu poema. Aquele que diria quem ele foi. Quando o completava, podia morrer convencido de que o mundo estava completo. A morte perdia sua importância. O fim, o glorioso, era o último poema. Sobre ele os olhos podiam se fechar. No Ocidente grego e latino os poetas usavam coroas de louros. Era o reconhecimento da cidade ao poder da poesia. Coroas cívicas, como as dos guerreiros depois dos seus grandes feitos. A poesia era um grande feito.
Não é mais. Ainda há poetas, é claro. Não são uma seita secreta. Mexem com as vidas dos que os leem. Adélia Prado conversa com Deus no miúdo da vida comum, a dela e as nossas. Poetas ganham até o Nobel de Literatura. Mas talvez já não aconteça de, quando passa a procissão que os leva ao túmulo (os poetas morrem; a poesia é que não), os homens espantados tirarem o chapéu. E haver tristeza na cidade.
Há poetas, e são bons. Devagar, devagar demais, vamos aprendendo que a poesia não é propriedade do Ocidente europeu e das suas transplantações pelo mundo. Chega da África, vem da Ásia junto com o sol quando se ergue molhado de mar. Também a poesia se globaliza, e esse talvez seja um antídoto frente a essa mundialização maior, que traz vantagens que fluem das grandes tecnologias novas, mas também faz encolher a linguagem. Não é bom que a linguagem de todos os dias fique pequena. Porque quando a poesia chega, com suas palavras extraordinárias, não cabe nos tradutores de sinais que alimentam a nossa comunicação. Ou o contrário. Correm na internet montes de “poemas de Fernando Pessoa”. São péssimos: prolixos, derramados, com palavras demais e poesia de menos. Fraseado de almanaque. Poemas de araque. Como se os “produtores de conteúdo”, quando se põem a falsificar poesia, só consigam imaginá-la grande e desconjuntada, tão fora do bom parâmetro dos 140 caracteres. A poesia fica manca. Os poetas ficam tristes. E não adianta desmentir, gritar contra a falsificação. Na rede não há ouvidos. Não para isso.
Por que precisamos da poesia numa hora dessas? Porque é uma hora dessas. Estamos em transição e não sabemos exatamente para onde. Há coisas em perda, com certeza. E certamente há coisas em ganho. Não sabemos para onde pende a balança, porque perdemos a chave desse cálculo. “Trouxeste a chave?”, perguntou Drummond. Não, não trouxemos. Perdemos a chave. Mas a porta ainda não se fechou. Estamos num mundo entre mundos. Nosso lugar agora é esse estarmos entre. Assusta e atrai. Traz as tentações da fuga para o deserto, por medo do futuro, e do mergulho no abismo, pela vertigem do presente. O mundo ficou vertiginoso. — A poesia pode dar ritmo à vida. Reencantar o planeta. Florir os desertos, tirar os assustados do isolamento. Talvez poucos prestem atenção à passagem do anjo da poesia. Mas quem guardou os olhos luminosos da infância vai ver. E cantaremos à vida um canto novo. Pode ser bom.
Foto: Gustavo Stephan (O Globo)