A Quaresma tem em si um deserto. É a sua travessia que faz arco-íris entre a festa do carnaval e a alegria da Ressurreição. Logo depois do batismo Jesus foi para o deserto ser tentado. O inimigo da vida, o noturno, ofereceu-lhe o que corrompe: poder, orgulho, servidão. Jesus disse não três vezes. E ficou só. O deserto foi a conclusão do seu batismo, sua verdadeira entrada na vida. E ele transbordou tanto dela que viveu para além da morte. Deixou-nos essa esperança: a vida, por mais humilhada que seja, vence. Mas é preciso aprendê-la. Não usar a dos outros, não impor servidão. Não deixá-la ser devorada pelos dentes de sombra do poder. Não manchá-la com a lepra do orgulho. A vida é o que há de mais poderoso, mas também o mais frágil. Não é fácil. A travessia do deserto é uma boa pedagogia para a vida. Jesus ficou nele quarenta dias e quarenta noites. Esse foi o tamanho do seu deserto. Nós não somos o filho de Deus. E, nesses tempos, o deserto cresce. O nosso pode ser maior do que quarenta dias. Podemos não chegar a tempo à festa da nossa ressurreição.
Desertar é retirar-se do que mata a leveza da vida. Os fabricantes de morte condenam a deserção como covardia. Mas não: desertar é sair de um campo em que o mal se dissemina como uma epidemia e recolher-se para a procura do que se tem e não se sabe: um modo qualquer de luz. A deserção significa virar-se para dentro para ver o invisível. Nessas horas, o invisível é o mais verdadeiro. Exercitar o olhar para dentro e voltar cheio de palavras de alegria amorosa, eis o bom deserto. Mas o nosso mundo tornado grande demais, e tão pequeno que cabe todo na tela das nossas telerrealidades, embaralhou o dentro e o fora. Queremos entrar em nós sozinhos, em silêncio, devagar, como quem vai ouvindo música. Mas não encontramos o caminho para dentro. Nossa vida se passa nas aparências, não tem mais profundidade. Queremos olhar para o fundo do nosso coração — mas os corações se tornaram rasos, estão expostos em feiras de utilidades, ajustam-se aos mais diversos interesses. O que não está à venda é o amor. Este precisamos procurar com a lâmpada de luz fraca iluminando o escuro dos quartos. Se encontrarmos, resgatamos nosso coração da feira e o levamos ao deserto de uma boa solidão.
Mas é difícil... Porque o mundo sobre o qual fechamos os olhos para encontrar a verdade da vida está saturado de imagens sobre as quais, justamente, não podemos fechar os olhos. Há o menino deitado morto na praia da Turquia, lambido pelo mar. Fugia de um deserto de morte e não conheceu sua páscoa. E há o menino de Aleppo, que deixou uma lágrima correr sobre o rosto duro de espanto e teve vergonha dela. Tamanha era a dor. E a velhinha na chuva no acampamento dos que navegaram desertos de água, chegaram e não chegaram. Ela nos acusa e exige de nós o que não conseguimos fazer. Ainda há as carnes destroçadas pelos drones vindos de nada, súbito susto da vida virada em pó. E há as cabeças decepadas pelos que fazem desse espanto imagem, e viralizam o mundo. Os corpos destruídos dos jovens que dançavam e ouviam música. Os dos desenhistas fuzilados entre seus lápis e papéis de resistência. As cenas dos irmãos separados pelos ódios da pós-verdade. Não podemos fechar os olhos sobre essas imagens. Precisamos levá-las junto. Ou o deserto acaba sendo um resort de inconsciência. Férias da vida.
Levamos as imagens conosco. São elas as nossas tentações. Como o inimigo da vida tentou Jesus, elas nos tentam. Porque a elas não podemos simplesmente dizer “nem só de pão vive o homem”. Falta-lhes, às pessoas que habitam essas imagens, infinitamente mais do que pão. Nem faz sentido gritar: “Não tentarás o Senhor teu Deus!” Porque não somos o Senhor nosso Deus. Somos testemunhas. Se não acusarmos, seremos também cúmplices. A grande tentação é a da cumplicidade, porque “não temos nada a fazer”. Nem lhes diremos que se afastem de todo poder. O poder os matou. Mas podemos dizer: — Deus não os abandonou, ponham nele sua esperança. — Talvez funcione. Se eles, os que habitam as imagens, ainda forem capazes de esperança.
Quando sairmos do deserto, se tivermos conseguido absorver toda a dor, queimado a semente do mal, haveremos de querer falar ao mundo. E descobriremos o deserto da linguagem. Palavras que balbuciam, gaguejam, repetem comandos, têm de caber em 140 caracteres. Precisaremos aprender a expressar o amor e a pedir perdão balbuciando e gaguejando nesse espaço rarefeito de linguagem. Vamos conseguir, porque a poesia é capaz desses prodígios.
Não conviveremos, nessa linguagem recuperada, com as palavras de ordem e de ódio. É assim que saberemos que, através do deserto crescente de um mundo anestesiado, chegamos à Páscoa. E poderemos rir como as crianças e os loucos. Porque teremos, de novo, vencido a morte.