Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Crônica esportiva

Há umas quatro décadas o futebol-arte foi sendo posto num ostracismo soturno

* Leia no site dO Globo ou abaixo (11/03/2017)

Agora, falando sério: o jogo entre os da Verdade e os da Não-verdade teve proporções épicas. Não tanto pela partida em si, mas pelo que estava em causa. Há umas quatro décadas o futebol-arte foi sendo posto num ostracismo soturno, e novas táticas de eficácia e força foram se tornando naturais. Os tempos mudaram: calçada da fama para os velhos craques, e bola pra frente. — Não que alguém tenha nada contra a eficácia. Mas ela não dança, não finta, não tabela. Não inventa, não arrebata. Vence. — Não que alguém tenha alguma coisa contra vencer.

O problema é que a progressiva descida dos Verdadeiros para a última divisão tirou os fundamentos do esporte. Boa defesa, distribuição sábia e ataque astucioso já não são indispensáveis. Desde que no final saia o gol. Ou o empate, frio e feio. Coisa triste. O amor às quatro linhas, amor real, foi se arrastando para o museu. As jogadas individuais, a beleza da representação do espaço do campo numa mente ágil e leve — fora. A verdade do jogo passou a ser a vitória. Valendo gol de barriga e de mão. Desde que o juiz não veja. E a pancadaria come entre as torcidas de um olho só, incapazes de verem o jogo. Demonizando o adversário. — Não que alguém tenha nada contra torcer.

Cartão vermelho para o jogo da Verdade. E aí é que está o problema. Um esporte inventado num passado que atravessou tempos longuíssimos, ficou bonito, encantou multidões, arrebatou — de repente posto na última divisão. O mando de campo agora sempre nas mãos da Não-verdade. Nesse exclusivismo há poder, mas não há beleza, há resultados, mas não graça. É essa unidimensionalidade que assusta. Não é mais esporte, é pura técnica. Muita preparação física, pouca humanidade. Por isso a seleção da verdade veio para o sacrifício. Para mostrar um jogo leve e encantador. Ir, contra os melhores prognósticos, para um corajoso enfrentamento.

A rivalidade, a contradição, as fricções guerreiras são boa coisa. Deviam ser. Mas os novos jogadores, treinados na academia da Vitória, veem com desgosto o jogo dos antigos, que frequentavam a academia do Risco. Agora é preciso controlar de antemão as variáveis, ter o jogo na cabeça antes de pô-lo no gramado (sintético). Acabou, dizem os novos campeões, o confronto de estilos. Não há mais estilo. Isso era coisa de estetas. Os tecnólogos da bola não abrigam mais essas levezas duvidosas. Não deve haver dúvida. É ganhar. Essa coisa de “essência do esporte” já deu.

Por isso é que Morte do Sujeito faz sucesso: porque não duvida, não pondera, não crê nem descrê. Vai lá e faz. Desprezo de Deus só reconhece as quatro linhas. Acrescentar uma dimensão fora delas, inspiração, alma do jogo, é uma tolice que compromete a eficácia. Fim dos Fundamentos joga como se não valessem mais regras, pactos entre os times, convenções de sentido. Junto com Desconstrução, arrasa tudo que séculos de experiência com a bola inventaram. Espírito de Sistema é como se dissesse: esqueçam essa lenda de que o jogo representa a vida. Fixem-se nas coordenadas e suas interações. Joguem como máquinas jogariam. Campeão do Perspectivismo e Relativismo Feroz vêm da mesma escola, a do “depende, vale o que parece, daqui foi gol’" Não se ligam muito na realidade. Cientista Formalista só vê esquemas. Não tem amor à massa suja, brilhante e confusa da vida. Pós-fatos e Fatos Alternativos também vêm do mesmo time de base. Não admitem discussões inúteis sobre se houve falta, se a bola passou da linha, se o impedimento era flagrante. Isso são fatos. Ou eram. Fatos já eram.

Por isso precisamos dos da Verdade. Porque, sem eles, não há mais jogo. As vitórias são antecipadas. Mas os da Verdade foram caindo, perdendo prestígio, perdendo a graça. Muitos acreditam que acabaram. Só que não. Foram ao campo provar que o jogo precisa de dois. E foi o que se viu. Depois de um primeiro tempo em que foram desprezados — e ganharam —, houve um de equilíbrio. Deu empate por dois motivos: havia, afinal, dois times; e demonstrou-se que, sem essas diferenças, mesmo abissais, o jogo perderia a graça. Ambas as equipes jogaram para ganhar, de verdade. E foi o que se viu: um empate de goleada. 4 x 4! Placar tão inesperado que os da Verdade saltaram a terceira divisão e vieram para a Segundona. Estão subindo. Não têm mais medo. Mas aprenderam uma coisa: os adversários jogam bola. Sem eles o jogo também não acontece. A situação não é um deus-nos-acuda nem um negror de fim de mundo. Tem conversa. O que é preciso é reaprender a jogar. E respeitar o adversário. Não há inimigos. No campo, entre as quatro linhas, é possível suspender o ódio. E ir na bola. Decidir na bola pode ser uma boa maneira de reencontrar o caminho da verdade. Ou não. A conferir. O campeonato só começou.

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)