No vestiário
Os da Verdade não sabem, e ralam; os da Pós-Verdade nem querem saber, e passeiam
* Leia no site dO Globo ou abaixo (25/02/2017)
O jogo está 3 x 1 para a seleção da Verdade. Placar inesperado. Os verdadeiros vêm caindo fulminantemente para a última divisão. E a seleção da Pós-Verdade está na primeira. Orgulhosa. Os comentaristas estão alvoroçados. Há teses conspiratórias. Propina. (O juiz vem das redes sociais. É virtual. O Virtual recebe propina? Um novo problema filosófico pintando no pedaço.) Os filósofos do futebol já vão formulando uma explicação racional. Ainda não publicaram. Mas na essência é isso: os da Verdade não sabem, e ralam; os da Pós-Verdade nem querem saber, e passeiam. Às vezes passear em campo dá nisso. 3 x 1.
Os da Verdade buscam redescobri-la. Vêm de times que sabiam, mas estão em decadência. Jogam com a experiência que têm. Beda, o Venerável, da equipe reserva, começou jogando porque é o grande guardador. Toda a sabedoria está nas suas enciclopédias. Bom goleiro. Quanto à verdade, crê. E basta. Heráclito pensa que verdade é o desencobrimento do mundo, que se esconde; e que tudo flui. Driblador desconcertante. Sócrates simplesmente não sabe o que ela é. E procura. Platão diz que a verdade não anda por aqui, é ideal: a verdade do gol é a ideia de gol. Fez um bonito. De cabeça. Aristóteles considera que o mundo não é simples, e a verdade é extraída a fórceps de dentro das coisas pelo intelecto humano. E depois vira um sistema coerente. Sistemático, Aristóteles vê o campo inteiro. É bom na distribuição.
Sto. Tomás vê anjos. Mas não anda nas nuvens. Propõe que verdade seja a representação do mundo pelo pensamento. Um mundo consistente, sólido. Afinal, criado por Deus. Sêneca, que entrou no seu lugar, crê na amizade. E que a verdade se faz aos pouquinhos, na vida simples e na conversa. Nietzsche é um demolidor. Pensa com um martelo. A verdade ora é um ódio à vida — e ele a combate; ora a vida na máxima potência, e então a vive. Dizem que anda perturbado com isso. Tirei-o para a entrada de Pascal, que não sabe se há verdade, mas aposta que sim. Seu jogo é essa aposta. Apanha. Avança gemendo. Heidegger sabe que verdade é toda a história do Ser. Sua visão histórica enquadra os adversários. É mal visto. Atrai a marcação. E deixa livre Foucault. Que já jogou em times de alguns dos adversários, não sabe nada da verdade, sabe só que não é nada disso. É o cético do time. Procura jogo sem parar.
A seleção da Não-Verdade nem está aí para essas características dos adversários. É do jogo-eficiência. O negócio é o resultado. Se necessário, com falta. Não acredita nos fundamentos do jogo. Quer ganhar. Espírito de Sistema é um que não dá bola para a vida. Tudo é operação, só serve para funcionar. E acabou. Desprezo de Deus é o que o nome diz. Nada de transcendência: é tudo aqui, é para ser útil e nada mais. Fatos Alternativos é a esperança da escola mais recente, a dos Pós-Fatos. Ainda verde. Mas perigoso. Campeão do Perspectivismo é um que só vê a bola dependendo do ponto de vista. Por isso faz golpe de vista em todas. Não vai nas divididas, que são reais. Não devia jogar na defesa. Cientista Formalista acredita que tudo é conta. Perdeu a vida de vista. Mas é supereficaz. Funciona. Pós-Fatos também joga atrás. Como não acredita em realidades objetivas não tem o que fazer no ataque. Apoia Fatos Alternativos e cobre os furos de Campeão do Perspectivismo. Morte do Sujeito agarra no gol. Não acredita nessa coisa de consciência, de interioridade. Entende-se um pouco com Nietzsche, do time adversário. Nietzsche também não acredita. Mas as coincidências param aí.
Fim dos Fundamentos é o estrategista. Se não há mais fundamentos para nada, tudo é acaso, e é aí que a verdade naufraga. É o pregador da eficácia. Desconstrução acredita que todo jogo é poder, e precisa ser desmontado. É um destruidor. Atacante um pouco sem eixo. Foucault o entende, mas já superou essa fase. Relativismo Feroz faz dupla com Campeão do Perspectivismo. Jogam parecido. Às vezes se embolam. Crise da Representação joga no time europeu de Fim dos Fundamentos e Morte do Sujeito. Tem posição firmada: tudo é opinião, representação verdadeira do mundo não há.
As seleções tiveram uma semana para se estudar. A da Verdade vai melhorar a defesa. A da Não-Verdade vai respeitar o adversário. Maneirar no desdém. A Verdade está viva no jogo. E ataca bem. Vai subir de divisão. Ainda leva perigo.
E pronto. A ansiedade é grande. O resultado parcial de 3 x 1 para a Verdade foi inesperado. Vem reação aí. O juiz das redes sociais entra, põe a bola no meio, observa os likes e os comentários (todos desairosos, ninguém concorda mais com nada, o jogo é um exercício de vinganças) e apita. Vai começar!
Que vença o melhor. O problema é: quem hoje decide o que significa “melhor”? Fim de papo. Só se vai saber na bola. A Não-Verdade começa. Desconstrução abre para Morte de Deus.
Foto: Gustavo Stephan (O Globo)