Há não muito tempo se dizia assim. Porque havia fatos. E havia verdade. Aliás, os fatos eram, por conta própria, verdadeiros ou falsos. O nosso trabalho era retirar as cascas, as capas, as crostas, e deixar a verdade nua em plena praça. Ela não era a burca dos fatos, para esconder sua nudez. Eles gostavam de andar sem roupa. Era quando podiam mostrar a polpa. Escorrer sumos. Dizia-se: serem objetivos. Não se diz mais. Falar da objetividade dos fatos, hoje, pode indicar uma de três coisas: despreparo filosófico (ignorância); crença na consistência do mundo (ingenuidade); atraso no acompanhamento da marcha da ciência e da tecnologia (desatualização). Porque os fatos (dizem) perderam objetividade e relevância.
Interpretações, pontos de vista, perspectivas, versões, isso sim. Verdade é isso. O diabo é que (dizem também) a verdade acabou. Então, nem o mel nem a cabaça.
Pontos de vista são importantes, quem negaria? Vamos por uma trilha na montanha e vemos, aqui, isso; mais adiante, aquilo. Depois nos encontramos com os companheiros e dizemos: tem lagoa aí embaixo; não, tem um raso de pedras secas; nada, é tudo mata virgem. Esquecemos de explicar onde estávamos quando olhamos. Estávamos num ponto. De lá tivemos uma vista. Outros, de outros pontos, viram outras imagens. E estão todos certos. A verdade daquele lugar é a totalidade dos pontos de vista. Se isso não for reconhecido vão todos discutir apenas as suas próprias visões. E que vença a melhor. A mais convincente. E a paisagem, coitada, cheia das riquezas que cada ponto de vista percebeu, fica lá, abandonada. Perdeu objetividade. É como se não importasse. A verdade é que não damos mais conta dela.
Toda realidade é hipercomplexa. Tem lisuras e asperezas, é luminosa e opaca. Cada coisa é muitas. A graça está nisso. É por isso também que nos enganamos tanto: a multiplicidade do real nos enreda, ficamos mareados. E aí, para não nos perdermos de vez, simplificamos. Escolhemos um aspecto, concentramo-nos nele, descrevemos, relacionamos, interpretamos. E tudo isso é muito bom. Só não podemos é, depois, nos esquecer de todas as complexidades que precisamos deixar de lado. É não voltar à coisa concreta, às suas boas multiplicidades. Ficarmos simplistas. Sabendo tudo de um pedacinho de nada da realidade complexa. Mas é isso que andamos fazendo. Há muito tempo.
Mas lá um dia o mundo se aborrece. Nossas simplificações intelectuais deixam de ser relevantes. Ele volta a nos impor sua natureza complexa e contraditória, objetiva, que um dia, há muito tempo, já fez a nossa alegria de pensar. Entramos em pânico. E fazemos como o homem que pegou a mulher prevaricando no sofá: tiramos o sofá da sala. Entrincheiramo-nos nas nossas brilhantes abstrações. E nos dizemos, para nos tranquilizarmos: “Qual objetividade, qual nada! Da verdade dos fatos só Deus, olhando totalmente de fora, poderia saber. E Deus (Nietzsche falou) morreu. Fatos, fatos mesmo, de fato, à vera, não existem, pelo menos não para nós. Esqueçam. Estamos pós-verdade-pós-fatos”. — Isso ocorre sobretudo nas ciências humanas, na filosofia. E é triste. Não tem mais mundo aí.
Há outro modo de torcer os fatos, praticado mais pelas ciências “duras” e experimentais: a observação “isenta”. Existe por exemplo uma disciplina chamada neuroteologia. Faz experimentos assim: pluga-se o cérebro de uma pessoa; quando certas conexões neuronais acontecem, a pessoa entra em um estado místico; ocorre, naquele cérebro, o que antigamente se chamava fé. Como eles sabem que a ordem dos acontecimentos é essa? Porque as conexões neuronais são observáveis. Há uma região do cérebro que se acende. Enquanto que a fé, resultado dessas conexões, é nebulosa e complexa, cheia de sinuosidades e recônditos. Não pode ser conhecida como um fato. Mas, e se for o contrário? Se, quando uma pessoa alcança um estado místico, o cérebro ativa certa região sua para dar sustentação a essa experiência não cerebral? Se esse, justamente, for o fato? Ah, não... Aí não estamos no campo da ciência. Não podemos medir. Não há inteligência para dar conta de uma coisa dessas. A fé não é um fato. — É o que, então? — Não sabemos. E diante do que não pode ser dito deve-se calar. (Wittgenstein disse. Muita gente acreditou.)
E ficamos assim, entre os modelos mentais que fabricamos, porque não acreditamos em “fatos externos”, e o silêncio do vasto mundo que a ciência não sabe observar. Jogamos o mundo fora! E entramos na ciranda das opiniões. O modelo mais recente delas chama-se “fatos alternativos”. Ainda não se generalizou. Mas já tem adeptos nos lugares mais altos do poder. Daí para se tornar lei e nos impor obrigações é um passo.
Ora, “fatos alternativos” é o mesmo que “mentira deslavada”. Está entrando na moda. Preciso dizer mais?