Morreu alguém. Estava vivo, é um fato. Não está mais. Também é um fato. Entre um e outro alguma coisa se passou. Se não se souber o que essa morte fica sem sentido. É preciso encontrá-lo. Procurar o sentido é a própria essência da verdade. O morto não sabe que por cima dele se passam essas coisas metafísicas. Mas entender sua morte é um modo de fazer seu luto. Precisa-se saber como. Por quê. Quando. São, todas, perguntas pela verdade. A pessoa morreu. A verdade, não. Ela se inquieta. E inquietar-se é próprio de estar vivo.
Não foi acidente. Nem morte natural. Nem suicídio. Então foi assassinato. “Então” é uma palavra típica de busca da verdade. É o primeiro dedo de uma hipótese. Não conclusão. Porque assassinato exige assassino. E disso ainda não se sabe nada. Dessa morte só se saberá a verdade quando se conhecer o assassino. É preciso procurar.
Há pistas. São levantadas, organizadas, distribuídas. Fica-se olhando para elas. Ali está o começo da verdade desse fato. Ainda não o vemos. Seu sentido ainda se esconde. Deixamo-nos embeber da sua presença. Reviramos os indícios. E de repente, pelo exercício paciente da análise ou por uma iluminadora intuição, a conexão aparece. As pistas ligam o que morreu a alguém, que pode tê-lo matado. Pode tê-lo matado. A opinião se satisfará por aqui mesmo, e pronunciará seus vereditos: segundo preferências de diversas naturezas, culpado ou inocente. A imprensa estampará fotografia e nome. Caso encerrado. — Não. Para quem procura a verdade, a hipótese avançou um pequeno passo. Porque ainda são necessárias as provas. Provas, como hipóteses, são também passagens obrigatórias para quem se dedica a encontrar a verdade.
É preciso vincular agora aquele que as pistas apontam ao corpo ali estendido no chão. Motivo. Oportunidade. Meios. Circunstâncias. Sem respostas a essas chaves de investigação, nada feito. Houve testemunhas? Alguém viu? Viu mesmo? Há depoimento consistente, que não comece com “Eu acho”? Verificável? “Verificável” quer dizer: que apresente uma insinuação pelo menos de verdade. Se não, estaca zero. Começar de novo. Até que, passados todos os filtros, pode-se enfim ligar uma pessoa à outra e constituir como fato o que ainda há pouco era hipótese: esse matou aquele. Encontrou-se uma relação causal. Causas, como provas e hipóteses, são constituintes fundamentais do esforço de trazer a verdade à luz. Pedem persistência. Se se desistir no meio das dificuldades, fica um morto sem sentido. Morte ainda mais triste.
Todos os dias acontecem fatos assim. Somos criadores de morte. Agora vamos imaginar que os próximos da pessoa que estava viva e não está mais sejam entusiastas da pós-verdade. Coerentemente, deveriam deixar correrem as versões, mesmo as mais conspiratórias, e usar a mais conveniente. Nem se terá requerido um bom sofista para dispor lado a lado argumentos verossímeis, desenvolvê-los e produzir convicção. Nada. Os da pós-verdade não precisam nem da impossibilidade de verdade dos sofistas. Não estão nem aí para ela. — Duvido. Eles vão querer saber no miúdo tudo o que aconteceu. Porque o morto é próximo. Para as coisas distantes, muito bem, verdade não há mais. Mas aqui, pertinho, encostado em mim? Faço questão! — Os da pós-verdade fazem vazamento seletivo. Às vezes sim, às vezes não.
Vamos chamar a esse sistema “modelo judiciário da verdade”. Só porque o exemplo foi o de um crime. Mas aplica-se a tudo. Todo fato tem valor, não é uma abstração fantasmagórica. O que vale um fato é o que de fato ele é. É a sua verdade. Que, para ser encontrada, pede desejo de procurar, hipóteses, provas, atribuição de causas. Isso vale para um homicídio, um imenso desvio de verbas públicas, as navegações desesperadas no mar da noite, a crise da representação política, a violência contra as mulheres, a discriminação das pessoas com deficiências, o repúdio a quem faz escolhas sexuais não convencionadas. Para os drones ocidentais e as decapitações jihadistas. Para a pobreza. Tudo que seja um fato pede a explicitação da sua verdade. Ou fica sem sentido. Pode até ser que lá um dia “pós-sentido” venha a ser a moda do ano. Mas ainda não estamos preparados para isso. Os fatos precisam de sentidos. Mesmo os conspiratórios. Mesmo os “prêt-à-porter”. E quem diz sentido diz verdade. Basta esse tão simples “modelo judiciário” para compreendermos isso. Cheque. E mate.
Que nada. Já tem um tempo que nos dizem essa coisa enorme: não há mais fatos! Só existem interpretações. Por isso é que estamos “pós” a verdade. Porque ela depende de fatos. E fatos não há.
Não deu para acabar nesta coluna. Já tinha adiantado isso na semana passada. O pessoal pós-verdadeiro é forte. E sério. Vamos falar de fatos no próximo sábado. Como os pais com os filhos pré-adolescentes: explicar os fatos da vida.