Um dia vou escrever uma metafísica do secundário. A metafísica era o modo de a filosofia cercar o essencial. O Ser, as causas, as categorias que permitem classificar todas as coisas. A substância, que constitui tudo. A matéria e a forma de toda substância. Deus. A metafísica mirava o coração do mundo e da vida. Dela decorriam as éticas e políticas. Hoje, ao contrário, falamos pelas beiradas. Pelo não essencial. Falamos por preposições — pós, pré. E por adjetivos. E, perdido o essencial, não nos entendemos mais.
O dicionário de Oxford definiu a nossa época como a da “pós-verdade”. Fico remoendo uma pergunta, insolente para os pós-verdadeiros: mas o que é verdade? Porque, se não soubermos isso, não saberemos o que é esse “pós”. A verdade acabou, me respondem. Essa referência absoluta perdeu serventia. Tudo agora se define por eficácias e funcionamentos. “O que é maçã?”, “O que é veneno?” são perguntas pela essência dessas coisas, pela sua verdade. Essa conversa acabou, dizem os pós. E eu fico pensando: comam uma maçã e tomem veneno e depois conversamos sobre a importância das essências. Ou não, dependendo da eficácia do veneno.
A situação é esta. Quem insiste em perguntar sobre o que é um girassol perde seu tempo. Perdeu-se no tempo. Não é pós-moderno. Mas nós sabemos suficientemente o que é “moderno”, para nos aboletarmos no seu pós? Penso que não. Mas há pouca gente interessada nessa dúvida. É verdade que não sabemos mais o que é verdade. Para os antigos era mais fácil, embora tenham até se acendido fogueiras por causa dela. Mas eles sabiam uma coisa, pelo menos: há verdade, e ela é essencial. Nada pode ser e não ser ao mesmo tempo. Ou ser uma coisa e o seu oposto. No século XIII Santo Tomás até definiu a verdade: adequação das coisas ao intelecto e do intelecto às coisas. Hoje essa definição se tornou inadequada. Coisas e intelecto? O que há são funcionalidades e operações. — Isso é até verdade, mas não toda. (Esta frase, aliás, nem pode mais ser dita. Estamos na época da pós-verdade...)
Caramba, penso eu, filosoficamente. Não sabermos mais o que é verdade e não haver mais verdade não são a mesma coisa. Nada a ver. Quando não sabemos é que podemos exercer de novo o prazer de perguntar. “O que é, pois, verdade?” seria a decorrência natural de já não sabermos mais. — Mas isso é filosofia, e a filosofia acabou junto com a verdade. Nossa época tecnológica é pós-filosófica. Dizem: — Ah bom, então já não está aqui quem falou. O filósofo foi cassado.
Outra estrutura secundária da língua são os adjetivos. Os substantivos dizem o nome das coisas. Os adjetivos opinam. Não vejo Aristóteles escrevendo: “O que constitui o ser é magnífico.” Vejo e leio que o que determina ser é substância. Substantivo. Substância pode ser uma coisa magnífica. Ou não. Questão de ponto de vista. “Magnífica” é matéria de opinião. E não cabem opiniões quando se está tratando do que é essencial. Adjetivos não são convidados para o diálogo filosófico. Só com adjetivos o diálogo degenera em bate boca. E hoje é assim.
Nem seria um problema enorme se o avanço dos adjetivos ficasse um assunto entre filósofos. Mas da metafísica decorrem também a ética e a política, ações diante do mundo e da vida. E não há dúvida de que nos encontramos numa grande crise ética e política. O Bem (ideia cara a Platão e Aristóteles), o Bem comum (sobre o qual meditou Santo Tomás), a potência livre da vida (vigorosa obsessão de Nietzsche) estão sendo catalogadas nos museus. Aliás, estamos também numa fase pós-museus. O destino dessas ideias há de ser o lixão da História. Não fosse o fato de que estamos na pós-história. Na época dos adjetivos. Diz-se: “O catastrófico governo de Fulano”; “o incalculável desvio do dinheiro público”. Coisas assim. E são, muitas vezes, verdadeiras. (Salvo que verdadeiro... etc.) Mas, ditas assim, o que importa são só a catástrofe e a magnitude do que é incalculável. Estamos pós-governo e pós-público. Interessam-nos os escândalos e seus espetáculos. E escândalos, é claro, são mesmo escandalosos, merecem atenção. Mas não há mais atenção. Há fruição, consumo. Escândalos se consomem. Qualificam alguma coisa. Mas a coisa, substantiva, não interessa mais. É escandalosa, ponto. O escandaloso, adjetivo da coisa, toma a cena para si. E vira objeto de consumo. Aprovamos ou não. Estamos ou não de acordo. Damos ou não curtidas no Facebook da ética da eficácia e da política da aparência. Opiniões. Versões, narrativas. E só.
Depois vamos às compras. Fazer nosso cotidiano de seres humanos. — Só que não — dizem-nos os mais afinados com as revoluções tecnológicas. Porque também estamos na fase do pós-humano.
Esperávamos o quê? Chutamos o ser, a verdade, a ética, a política, Deus. A conta chegou. Vamos trabalhar! A tampa ainda não se fechou.