Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Os reis, quando adoram

Vieram em boa-fé, trazem coisas para o menino. O dia é deles. Deixem-nos vir

* Leia no site dO Globo ou abaixo (07/01/2017)

Ontem mesmo os reis chegaram ao estábulo debaixo da estrela. Foram guiados por ela, lá do Oriente, diz-se. A luz os trouxe. E é tão delicado, num mundo escuro, guiar-se pela luz! Olhar estrelas... — Mas hoje faz uma semana que o autodenominado Estado Islâmico matou com a ferocidade que está no seu DNA sombrio 39 pessoas em Istambul. Como nos atentados de Paris: gente que se divertia, cantava. O terrorismo é triste. E fiquei na dúvida. Preciso escrever sobre essa violência, que rasga a túnica inconsútil da humanidade inteira e a prega na cruz, e a obriga a beber fel. E lhe retira a esperança: “Por que me abandonaste...?” — Mas não hoje. Os reis já chegaram. É tarde para mandá-los voltar. Vieram em boa-fé, trazem coisas para o menino. O dia é deles. Deixem-nos vir. Com os outros, os sombrios, os de olhos vazios, acertamo-nos depois.

Os reis são, justamente, reis. Definem-se pelo poder. Pode ser que lá nas suas terras sejam mesmo violentos. Não sei. A história reteve deles a doçura e a humildade. Vieram de longe — um era negro, terá peregrinado desde a África? — para reverenciar. Reis não reverenciam. Não se dobram. Não se dobrarem é o que faz deles reis, e da sua vontade, lei. As leis não se dobram. Os antigos as inscreviam em tábuas de pedra ou bronze. Nada de papel, que o fogo queima e a água desmancha. As leis dos reis são para sempre. E esses três devem ter deixado nos seus reinos leis assim. Das que aterrorizam os súditos e os trazem na obediência.

Hoje, não. Têm a luz da estrela nos olhos, e a luz os tornou doces. Vieram de tão longe porque, por um tempo, pequeno que seja, seu lugar é aqui, no menos real dos cenários do mundo. Cocho de animais comerem, os animais, burro e boi, a mãe e o pai, uns pastores que trazem suas ovelhas. Nada de mais. E no entanto, sim. Tudo é diferente do que aparece a olhos apressados. Os anjos anunciam uma nova humanidade, que vê a luz de Deus e talvez viva na vontade boa do amor. O pai medita no mistério de uma paternidade de cuja concepção não participou, mas da qual é, inequivocamente, o titular. A mãe ainda ouve o anúncio do outro anjo, que lhe disse coisas doces e também terríveis: que havia nela a Graça, e seria a mãe do filho de Deus. E ela disse: “Faça-se em mim segundo a sua vontade”. E fez-se. O burro e o boi, que em geral são bestas de trabalho, estão ali como testemunhas. E cederam sua manjedoura para o menino nascer. E o menino...

O menino é tão extraordinário que tem só para si uma estrela. Que foi vista no mundo inteiro. Que guiou os reis na longa viagem. Não é só um menino. Que presente dar-lhe, que se pareça com o que ele é? Um deles — chamavam-se Melchior, Gaspar e Baltasar — pensou: Esse é um rei. Sua estrela o coroa. Dou-lhe ouro, que representa a realeza. E deu-lhe ouro. Outro, atento ao coro dos anjos e à devoção dos pastores, se disse: É o Santo anunciado. E deu-lhe incenso, para homenagear a santidade que nele sorria. O terceiro tinha trazido mirra, perfume raro, também usado na preparação dos corpos para o túmulo. Talvez tenha pensado: Esse menino vai morrer, como todos morremos. Dou-lhe mirra, preparo-o para o nosso destino comum. Mas ele não é como nós. É também um rei e um santo. Um rei que não usará o poder com mão pesada. Seu jugo, talvez se diga assim, será suave. Seu peso, leve. Esse menino — digam se me engano — é todo o poderoso amor. Nem é um santo comum. Curará pessoas, realizará prodígios. Mas tudo isso para que o povo o veja. Sua santidade está em outra parte, que não consigo compreender. Dou-lhe mirra porque vejo um menino que logo será homem, e morrerá. Mas sinto que meu presente é o mais pobre dos três. — E depositou a mirra aos seus pés.

O menino sabia de tudo. Seu coração sorria para os três reis humildes e perturbados. Ouro? Incenso? Mirra? Um rei, um santo, um homem? Ele sabia, o menino, que, filho do Pai, gerado, não criado, o mesmo com o Pai, tendo participado da feitura de todas as coisas, era o supremo herdeiro da terra inteira. Mas não era um rei. Reino, se tinha, não cabia no mundo dos reis. Sabia também que, nunca tendo negado o Pai, não tendo procurado ser seu igual no conhecimento do bem e do mal de tudo que há, era o Santo, o sem mancha. Mas não era um santo. Era aquele que excede toda a santidade, porque pertence a Deus. E, sim, haveria de morrer. Tinha mesmo vindo para isso. Pensou melhor. Não, tinha vindo para ressuscitar. Morrer e não morrer. Homem e Deus. O escândalo supremo e o mistério incompreensível habitavam nele.

Recebeu com gratidão o ouro, o incenso e a mirra. Honrou a humildade dos reis. Mas preferiu a mirra. Nela, mais do que nos outros, estava inscrito o seu destino. — Muito suavemente sorriu. Como as crianças sorriem, e é encantador. E todos se encantaram. E a história começou.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)