Estaria no seu claustro, sem preocupações com o calendário. Não que desprezasse as marcações temporais. Era importante, claro, determinar se os evangelhos que interpretavam Cristo como apenas homem, sem sua natureza divina, eram ou não contemporâneos dos outros, os que ficaram, em que Deus é Deus desde o Menino até a Cruz. A Cruz na verdade marca um tempo, o da morte. Sabe-se a que horas Jesus disse “Tudo está consumado. Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”. Foi a undécima hora, por volta de cinco da tarde. Tudo isso era importante. Mas no seu claustro, aproximando-se a meia-noite de trinta e um de dezembro de 449, não imagino que ele estivesse em contagem regressiva. E no entanto no ano novo de 450 ele iria morrer. Aquela meia-noite podia ser mesmo o último instante de um tempo velho. No novo, o amor e a esperança se reuniriam. A esperança na Ressurreição, tempo definitivo. E o amor de Deus. Mas ele não sabia. Não fez propósitos de ano novo: “Esse ano que entra pretendo morrer.” Ele de fato não podia saber.
Hoje nós sabemos. O ano ruim de 2016 termina agora, às 24 horas redondas. Depois, não é mais. E vamos de branco, para a paz, com alguma coisa de amarelo para a prosperidade, celebrar a chegada do novo. Estouramos espumantes. Cantamos. Levamos flores ao mar. Esse é o momento da esperança. Por ela é que fazemos propósitos. “Esse ano vou visitar mais os meus pais.” “Vou ser mais presente à vida dos meus filhos.” “Vou aprender flauta doce.” Por que não antes, no tempo que agora é ano passado? Porque passou. Já era. Agora tudo vai ser melhor. Inclusive eu. A esperança foi adiada. Ganhamos mais 365 dias para nos fazermos melhores. Adiamos o amor. E o amor adiado, quer dizer, de novo possível, por sua vez alimenta a esperança. Amor e esperança estão na passagem de ano. De um modo abissalmente diferente de como se apresentaram a Santo Agostinho. Ele não precisava esperar um despertador do novo para fazer o propósito de amar. E de viver na esperança. Estava imerso num tempo maior do que o nosso, que foge. O tempo da sua espera era a eternidade. No ano novo desnecessário de Santo Agostinho havia Deus. De modo que cada dia, todos os dias, eram ano novo. Um tempo começando de nada, sem segundos e horas, na direção do grande tempo da alegria.
Não vamos exigir que Deus diga “presente!” entre a multidão de Copacabana. Mas ele estará lá. Ele se define como um círculo cujo centro está em toda parte e a circunferência em lugar nenhum. De modo que com certeza Deus estará no centro da muvuca. Nem visto nem requisitado. Não andará à frente da multidão como uma coluna de fogo. Não aliviará o calor desmesurado com a brisa leve que ele é. Não expulsará os vendilhões que andam por ali fazendo seu ganho desavergonhado. Receberá com bom humor a concorrência de Dionísio, o deus grego da embriaguez e da festa. Vai passar por isso de novo no carnaval. Depois vai morrer e ressuscitar. E tudo bem. Ele se dá bem com o tempo. Foi quem o inventou. De modo que ali, no meio da multidão, achará graça naquele endeusamento do relógio. 24 horas. 00 hora. O passado acabou. O futuro começa. E nós ficamos suspensos esperando a rolha estourar e o tempo voltar a correr. Porque, na verdade, só habitamos o tempo que flui. O futuro está em nós o tempo todo. Mas só o vemos quando o trazemos ao presente, que passa. E a esperança vira propósito.
Podíamos pôr nos nossos propósitos a esperança e o amor. Isso seria uma promessa e tanto, não para um ano apenas. Para o tempo todo. Aleppo ainda estaria de pé. E os refugiados não morreriam no mar.