Um advento é um susto. Vai tudo na sua irrelevância costumeira, vida sem surpresas nem maiores alegrias, sonâmbula, e de repente o véu do tempo se rasga, a cronologia se enruga toda de susto. É um instante só. Uma ruptura do habitual. Normalmente o tempo corre no relógio. No pulso ele está praticamente à mão. É contínuo: um minuto, três séculos, um milênio. No meio da noite, quando todos dormem e o tempo poderia se rebelar da sua prisão cronológica, passa de hora em hora o guarda-noturno acalmando os sonolentos: “Três horas, tudo bem!”, canta o guarda-noturno. Cantava. Não existe mais essa nobre, metafísica profissão. Mas a vigilância já se automatizou em nós. A noite não ousa mais se aproveitar do entorpecimento das consciências para quebrar os relógios e relampejar no instante.
Instante é um tempo súbito e denso. Concentra e anula todas as ampulhetas. É uma ruptura dos relógios, anulação da aritmética do antes e do depois. O instante é todo agora. É puramente intensivo. E espantoso. Dispomos de um assim, todos os dias, e não lhe damos a menor atenção. É a meia-noite. Quando os dois ponteiros se encontram nesse ponto, uma coisa tremenda acontece: o tempo se anula. Ele para. É um relâmpago de libertação. Depois o relógio recupera seu poder. Um microssegundo depois. Porque na meia-noite mesmo, instante rapidíssimo, a diferença entre passado, presente e futuro toda se concentra numa identidade absoluta. No mesmo momento um dia acaba, outro começa e — que horas são?: ontem e amanhã. Agora, hoje, na precisão da meia-noite, é ontem e amanhã. Nos relógios digitais a coisa é escancarada: passa-se de 23:59 para 00:00. Fim e começo. E não nos damos conta. Estamos por ali, distraídos, alguém pergunta que horas são, e respondemos: “Dez para a meia-noite”. Não nos assustamos: em dez minutos o tempo acaba! Depois recomeça, mas aí é outro dia. — O tempo sem tempo, que prenuncia o tempo de relógio, é o corpo do Advento. Todo dia passa. E o deixamos passar.
José, pai de Jesus, temeu o tempo zero. Estarreceu-se com o Advento. Quis fugir dele no meio da noite, como um ladrão. A situação, diga-se em seu favor, era de gritar de medo. Porque o Advento que se anunciava na gravidez de Maria não era uma meia-noite qualquer, tempo imóvel e densíssimo entre um ontem já não mais e um amanhã ainda não. Era a ruptura total do tempo. A partir dele os números que contam a duração precisarão de sufixo: a.C., d.C. E a eternidade se precipitará sobre a História. Porque Maria estava grávida do Espírito, grávida de Deus, cheia de uma vida destinada a durar para sempre. José não sabia de nada disso, essas filosofias não atormentavam seu espírito operoso de carpinteiro bom. Mas sentia, espantadamente, que alguma coisa ali estava fora do tempo certo.
Maria era virgem, e lhe tinha sido prometida. Os amores que produzem gravidez ainda estavam resguardados no futuro. Mas Deus, que não tem tempo que se conte, decidiu entrar na história humana. Escolheu Maria, precisava de mulher. E tudo aconteceu fora do tempo dos relógios. Sob a sombra do Espírito, Maria concebeu Jesus. Não houve um antes e um depois. Maria estava grávida, e sua gravidez era a do Absoluto. José não podia mesmo entender. Nenhum de nós entenderia. Pensaríamos mal da virgem prometida, subitamente mãe. — A gravidez de Maria foi o maior prenúncio de advento da história humana, como contada por nós, cristãos. Para outras partes da humanidade, outros Adventos, ou advento algum. Mas, para José, o advento foi esse. E esse o aterrorizou. Quis fugir. O Anjo (naquele tempo os anjos intervinham na nossa história) lhe disse que não. Um pouco só, o pôs a par do Mistério. E José recebeu Maria, e foi o pai de Jesus. É por ele que o menino que vai nascer na hora mágica do próximo sábado descende de Davi. E a história de Deus e a dos homens se encontraram. E o espanto veio viver entre nós.
Dois mil anos depois, somos herdeiros do Advento e do medo do que virá. Nosso DNA contém o instante suspenso da gravidez de Maria e o medo de José. Da gravidez nasce nossa esperança de futuro. Nosso desejo de um tempo que rompa com o banal. A gravidez de Maria é mãe do nosso gosto de sonhar. O espanto de José é pai do nosso medo do futuro. O que nos faz desejar ficarmos presos no presente, ou voltarmos a um passado familiar e consolador. O Advento assusta. Diante da sua proximidade não podemos apenas olhar o relógio e anunciar: faltam dez minutos. A anunciação do Advento é feita pelo Anjo. Exige humildade e alegria. É um espanto.
As coisas andam tão escuras, tão tristes, que tememos nos espantar. Tememos a decepção. E se, dessa vez, o que virá não vier? Se o Anúncio não passar de retórica de venda? — É compreensível o nosso susto, como foi compreensível o medo de José. Mas vamos apostar que mais uma vez ele virá. — E ele virá.