Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Algo virá

É sina, parece, dos anunciadores não verem a chegada do que pressentiram

* Leia no site dO Globo ou abaixo (10/12/2016)

Há dias em que um pressentimento silencioso nos sopra ao ouvido: “Algo virá!” A vida está ruim, os sonhos andam tristes, a esperança escurece como a luz que se encolhe antes de apagar. Os poderes zombam das pessoas, desprezam e roubam, e fazem o mal. E isso, diz bem secretamente o nosso coração, não pode ser assim. É contra a vida, entristece a alegria, apaga os olhos. Deus não pode permitir a morte da alegria. Foi para ela que viemos. Não é possível, algo virá. Algo virá.

João Batista foi um que veio. Nesses dias, as igrejas do mundo inteiro estão falando dessa forma especial de advento: o dos que anunciam. É poderosa, pois prepara caminhos, desperta esperanças. Mas é também um pouco triste. É sina, parece, dos anunciadores não verem a chegada do que pressentiram, e anteciparam ao povo: — Preparem-se. O vento gira para a paz. A brisa vai ficar muito leve. O mundo reaprenderá a sorrir. Algo virá. — João foi preso. E morto. Sua cabeça foi oferecida ao rei numa bandeja de prata. Os poderes sempre recebem as coisas de bandeja. São os poderes: o mundo lhes é entregue para que façam o que quiserem. Querem tê-lo para si. Possuir as coisas e as gentes. Por isso, para eles é assustadora a voz que anuncia algo, que virá. Cortam-lhe a cabeça. A boca fica sem voz, mas os olhos ainda fuzilam na luz que se apaga: Algo virá!

João Batista talvez tenha pertencido à seita dos essênios, grupo religioso da Judeia que vivia segundo a extrema pureza dos homens de Deus. Mas vivia em reclusão, às margens do Mar Morto. O sal que havia em excesso no mar faltava às suas vidas. Eram santos, mas estéreis. Separaram-se do mundo, onde só reconheciam o mal. Viviam em jejum e orações. Parece que é bom jejuar. Rezar é bom. Só isso, no entanto, e mais o deserto, é pouco para a vida. Julga e condena a vida. Põe-se acima dela. É arrogante. João, se de fato foi essênio, não gostou dessa humilhação da vida. Rompeu, saiu para o deserto para que o deserto acabasse. Porque não era possível. Algo havia de vir para florescer o deserto. Seu coração dizia que algo havia de vir.

Sozinha no deserto sua voz clamou. Por isso dele se disse: a voz que clama no deserto. Hoje usamos essa expressão para dizer que alguém fala sozinho, ninguém o ouve. Pode mesmo estar anunciando o que virá. Ninguém o ouve. Mas esse não foi o sentido do clamor de João. Ele pôs o machado na raiz das árvores que usurpavam a terra e não davam frutos. Anunciou o rebentar das flores. Foi um antecipador da primavera. E para que ela viesse, e não retornasse mais à esterilidade de um inverno de fim de mundo, batizava. Lavava com a água do rio Jordão os corpos que traziam sobre si a poeira de muita estrada sem direção, corpos chegados ao extremo deserto, e dizia: Eu batizo com água, para limpar o que em nós é sujidade da vida. Mas algo virá, virá alguém, que já não precisará banhar os corpos: sua claridade irá diretamente ao coração. Algo virá, e será alguém. Dele, tudo que sei é que não sou digno de amarrar os cordões dos seus sapatos. Mas não me entristece ser tão pequeno. Porque vocês não sabiam disso, e fui eu que lhes disse: Ele virá.

Um dia João batizava como todos os dias. Mas não era um dia qualquer. Entrou nas águas um homem, e depois da imersão purificadora o céu se abriu e uma voz disse que aquele era seu filho muito amado, que devia ser ouvido. Imagino que para a maioria o céu não tenha se mexido. Se estava cinza, cinza ficou. Se havia sol, ninguém o confundiu com um céu que se abrira. Mas houve quem visse e ouvisse. O algo que viria era alguém, que tinha chegado. Quem viu, viu. E floresceu de esperança.

Amanhã vamos ter notícias de João, o batista, preso, depois desse batismo e antes de lhe calarem a boca que teimava em anunciar a chegada do que havia de vir. Estava inquieto. Será que aquele, que batizara, era mesmo o esperado, o que havia de vir entre o povo? O Messias, era a palavra de então. E disse aos que o seguiam: — Procurem aquele que batizei, e o céu se abriu. Perguntem a ele. — E foram. O homem se chamava Jesus, filho de José, nascido em Belém. E não disse: sou eu. Respondeu: vejam o que está sendo feito aqui, julguem o que viram e digam a João. Ele entenderá. Porque ele veio antes, e quem vem antes conhece o que virá. Ninguém foi maior do que ele, que viu.

Pode ser que a sorte dos que anunciam que algo virá seja a de não estarem presentes quando o advento se dê. Mas eles viram. Mais do que isso: não precisaram ver para saber. Não tinham perdido a esperança — e no entanto o deserto crescia. E falaram. Benditos os que falam, mesmo quando o deserto cresce. É para eles que o céu se abre. São eles que ouvem a voz. Os homens do Advento não precisam estar em volta da manjedoura. Eles a anunciaram. E ela se fez carne, e habitou entre nós.

 

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)