Interlúdio místico
O mundo não tem estimulado muitas alegrias. Seu pêndulo vai rodando para o lado sombrio
* Leia no site dO Globo ou abaixo (19/11/2016)
Viemos passar o feriado num canto de serra mergulhado no tempo. A casa que aqui foi feita não derrubou árvores. À nossa volta elas conservam suas raízes antigas, folhas novas, bichos em torno. É um lugar pacífico. É belo, tem um riacho que corre como um som caricioso de chuva. Um pequeno açude que o recebe, e tinha peixes antes que de fora a ganância lhe poluísse as águas. Mas o açude resiste, está lá como uma memória bonita que se sujou. Uma curicaca jogou seu grito agora sob a chuva. Devia anunciar sol. Talvez esteja mesmo. Só saberemos depois. Os ritmos aqui são assim. Há depois. Pode fazer sol, pode chover. É desse jeito a natureza. Não tem previsão do tempo. Tem uma curicaca esperançosa. Mas agora chove.
A chuva nos mantém em casa. Não é ruim. Tem uma lareira modesta, ia dizendo fraterna, para o frio. O fogo é alegre. Tem livros. Podemos ouvir música. Há sobretudo um grande silêncio, que o riacho corta e se integra nele. Aqui não chega jornal. Para quê? O mundo tem andado na contramão da esperança. Logo estaremos de volta a ele e à sua ferocidade com tão pouca beleza. O mundo está nos ameaçando com não haver depois. Aqui há. Aqui sonhos são possíveis, desejados e bem-vindos. Não se fazem rogar. É um lugar encantado onde eles se encontram bem. Fecho os olhos. Ou nem preciso. Com sorte, se estiver suficientemente distraído, quem sabe possa sentir a brisa leve, miudinha, que nem agita as folhas. A brisa leve de Deus.
Tenho um querido amigo, irmão que encontrei na velhice, que é ateu. Comunista e ateu. Antigamente era obrigatório. Agora já não é. Mas é assim: ele não sente que tenha Deus no canto silencioso do coração. Do seu generoso coração. Um dia leu que Paul Claudel, que viria a ser um grande poeta católico, convertera-se subitamente — há conversões assim, como a de São Paulo na estrada de Damasco, que fazem cair do cavalo — quando entrou na Catedral de Notre-Dame em Paris. Precisou: na altura da oitava fila. Meu amigo foi lá. Deu uma chance a Deus. E nada. Deus não veio. Não na oitava fila, não naquele lugar.
Isso é o que o meu amigo me diz. Desconfio de que quando decidiu fazer a experiência um encontro já se tinha dado. Tão silencioso, tão disfarçado em coisas sem importância que meu amigo não o sentiu. Quando ele me conta essa história não posso deixar de recordar a expressão de Pascal: “Não me procurarias se já não me tivesses encontrado”. Pascal procurou gemendo. Mas já tinha encontrado. Meu amigo me diz que não. Deve estar certo. Ele é quem sabe. E Ele. Coisas muito misteriosas. — Aqui, no meio da chuva que não para, mas não é triste, com a lareirazinha alegre, nem são tão misteriosas assim. Mas também não sei.
Antes de vir para cá descansar nesse feriado longo que o calendário nos deu, estava meio triste, “andando de lado e olhando pro chão”. O mundo não tem estimulado muitas alegrias. Seu pêndulo vai rodando para o lado sombrio. Mas vim, pensando em acalmar o cansaço do corpo e da mente do trabalho de um ano que caminha para o fim. E aqui percebi que há mais mundo do que aquele que uns políticos vão poluindo, como os vizinhos que sujaram nosso açude. Há um mundo de raízes antigas e folhas novas, de riacho mansinho e fogo alegre. Um que se vê quando os olhos estão fechados e o silêncio é grande. Ou nem é preciso fechar os olhos para ver. Há tempo que a ferocidade da política não me deixava lembrar os místicos e os poetas. Escrevi muito sobre ela porque percebo com olhos assustados que a multidão dos pobres vai crescer. Está crescendo. Eles não precisam das minhas palavras, é verdade. Mas não tenho outra coisa para lhes oferecer. Por isso falei.
Eram muitas vozes em volta. Gritavam. Estavam com raiva. Tive raiva também, parece. Mas bastaram duas horas de estrada e mil metros serra acima para não ouvir mais os gritos. Os místicos, os poetas estão aqui. Agora é só ficar quieto, respirar o ar frio e limpo, e esperar. Talvez quem chegue ao ponto de esperar já tenha encontrado. Não pode ser? — Com calma, de manhã, quando o dia ainda não invadiu o tempo, espero devagar. Escrevo devagar, sem ruído que atrapalhe o silêncio. Precisava escrever um pouquinho. Devia umas palavras vagarosas ao coração de quem tem sido massacrado por essas colunas, que não têm oferecido muitas esperanças doces nas manhãs de sábado. Os poetas me olham das estantes. Deus circula. Não o vejo, não cheguei à oitava fila. Mas ele vai estar lá.
Falta a música. Vou trazê-la agora. E a paz talvez esteja completa. Logo vou voltar para as cidades do poder, da feiura das ladras ambições. Para os olhos vazios dos pobres do corpo, a quem vão roubando também a esperança da alma. Espero levar, para eles e para mim, uma alma leve. E um sorriso bom.
Foto: Gustavo Stephan (O Globo)