Projeto coordenado pelo prof. Marcio Tavares d'Amaral e vinculado ao IDEA - Programa de Estudos Avançados/ECO-UFRJ

Ocupações

Nesse momento, os secundaristas ocupam suas escolas para poderem se ocupar dessas matérias. Para que não lhes sejam roubadas

* Leia no site dO Globo ou abaixo (12/11/2016)

As pessoas quando ficam adultas têm ocupações. A palavra é interessante. Dá a impressão de que não se pode definir a vida pela liberdade. Devia ser possível perguntar a alguém: “Você é livre para quê?”, e ela responder: “Para dar aulas”. Ou: “Para cuidar da saúde das pessoas.” Não é assim. Principalmente nos formulários, onde consta o item ‘‘ocupação’’, e é preciso escrever ‘‘professor’’, ‘‘médico’’. Palavra curiosa. Diz que é preciso uma pessoa estar ocupada para ser a pessoa que é. Por isso talvez não se possa escrever: ‘‘poeta’’. Ou: ‘‘místico’.’ Essas são liberdades, não são ocupações. Lá uma vez ou outra, nunca das 9h às 17h, Deus dá um verso, e o poeta sua o poema. Lá de vez em quando, Deus se dá, e o místico ilumina os olhos. — Mas a palavra tem também outros significados. Nesse momento (escrevo na segunda, cedo), ela quer dizer: meus alunos estão ocupando a Praia Vermelha. O campus da UFRJ. Não precisam acampar, montar barracas. O espírito das ocupações é uma concentração que pensa e deseja. E conversa.

Os secundaristas, que iniciaram o movimento, estão, como podem, defendendo a manutenção de um ensino humanístico. Pode parecer estranho, jovens de 15 anos brigando para conservarem obrigatórias algumas matérias, ao invés de reivindicarem um currículo aberto, que cada estudante possa compor ao seu gosto. Defender a preservação das ‘‘humanidades’’ num mundo tecnológico em que vão já já disputar ocupações num mercado que talvez preferisse os apertadores de parafusos que Chaplin nos ensinou. Mais sofisticados, naturalmente, mais high tech... É verdade que os currículos escolares são muito cheios de obrigações. Pouco espaço para o exercício da liberdade criativa, a explosão de energia inventadeira própria dessa idade. Uma reforma é totalmente necessária. Mas essa de agora caiu mal. Pelo que pretende fazer e pelo momento em que está se dando. Tempos ruins, que não estimulam a liberdade.

Pode-se considerar boa a reforma que ameaça não deixar que esses jovens conheçam o que está em causa nas sociedades em que vivem, em que terão de construir seus futuros? Uma reforma que não ensina a história das ideias que moldaram a nossa cultura? Que deixará os jovens ignorantes da grande arte que constitui nosso patrimônio, e cujo conhecimento é fundamental para aprenderem a fazer diferente? Podem não ser partes inarredáveis dos currículos escolares a sociologia, a filosofia e as artes? — Nesse momento, os secundaristas ocupam suas escolas para poderem se ocupar dessas matérias. Para que não lhes sejam roubadas. Estão exercendo sua ocupação. Estão livres.

Esse ar de liberdade inquieta, sentindo a ameaça que vai congelando seu território de invenção, chegou às universidades. Aos poucos elas também vão tendo seus campi povoados de gente que traz de volta a urgência de conversar, de as pessoas se encontrarem, de falar e ouvir. Livremente, sob o sol. Querem congelar o sol! Por 20 anos! Meter a tesoura no futuro! Daqui a 20, quando o futuro chegar, esses jovens estarão lá pelos 40, e tristes. Serão uma geração perdida, que viu minguarem, ano após ano após ano, verbas, bolsas, alojamentos, restaurantes, professores. Equipamentos, salas em boas condições de habitação estudiosa. Bibliotecas, sem renovação. Laboratórios, sem reagentes. O cenário é apocalíptico, mas nem um milímetro exagerado. Tudo isso já acontece, em escala menor, mas bem visível. Recursos são necessários para acudir a essas necessidades urgentíssimas. Mas não haverá. Não sairão de outras rubricas. Não são prioridade verdadeira. Vão virar gelo. O pouco de hoje será repetido por 20 anos. Enfaixado como múmia. E o tempo operará sua usura. — Os universitários estão ocupando as casas do seu futuro para que o futuro não as deserte. Estão, nesse momento, muito ocupados.

Será bom se pudermos incluir nas nossas aulas conversas sobre esse presente fosco que querem nos obrigar a viver. Não sei se será possível, se essa será a direção do movimento. Vou estar lá para isso. Ficar perto deles, delas, sorrir com as suas esperanças e o seu espírito. Nós, que há 50 anos, como estudantes, resistimos à ditadura, adquirimos o hábito de pensar que a juventude de hoje não é como a nossa foi. Combativa, libertária, igualitária, cheia de luz e utopia. Arrogância de velhos. Ela está lá, na rua e nas redes, resistindo como nós resistimos então. É verdade, tínhamos no lombo uma ditadura. Colegas nossos eram presos por divergirem. Depois sumiam. Não é mais assim. Mas os reitores estão sendo convocados para denunciar os ocupantes. Constrangidos a se explicarem se não o fizerem. E, claro, não o farão. Há uma grande tensão armada aí.

Melhor nos ocuparmos dela antes que ela nos ocupe. E um dia, mais tarde, nossos alunos fiquem sem ocupação. E nós também.

Foto: Gustavo Stephan (O Globo)